Os verdadeiros desafios da saúde global

Nelson Gouveia, Renato Rocha Lieber, Lia Giraldo da Silva Augusto
2004 Cadernos de Saúde Pública  
milhões para pesquisas sobre doenças que afetam desproporcionalmente os países em desenvolvimento. Segundo ele, o objetivo seria direcionar recursos para pesquisas que busquem transpor obstáculos importantes (denominados grandes desafios) para o progresso mais rápido contra essas doenças, que de maneira geral recebem menos atenção que outros males que afetam os países mais ricos. Em outubro do ano passado, em artigo na revista Science 1 , a Fundação Bill and Melinda Gates, em consórcio com o
more » ... ional Institute of Health dos Estados Unidos, anunciou a primeira lista dos chamados Grandes Desafios Globais em Saúde, para que propostas de projetos de pesquisa sejam encaminhados para avaliação e, se for o caso, para financiamento. O artigo da revista Science explicava ainda como foi realizado todo o processo de seleção desses "grandes desafios". Todavia, ficamos preocupados com o enfoque de alguns dos desafios apresentados, devido às implicações que as pesquisas induzidas por estes podem apresentar para a saúde e o meio ambiente. Em nosso modo de ver, a anunciada intenção de financiar pesquisas que objetivam o controle de populações de vetores por meio de estratégias genéticas ou químicas, que debilitem ou incapacitem populações de insetos transmissores de doenças, carece de uma preocupação explícita e detalhada, feita sob uma perspectiva ética e eco-sociossanitária. Apesar de haver menção de que se desejam estratégias (tanto químicas quanto genéticas) que não tenham efeitos adversos sobre o meio ambiente, não há precisão, nem consenso entre pesquisadores das mais variadas áreas, sob o que consistiria o risco, a ausência de risco, ou mesmo o que seria um risco am-biental aceitável, quando, por exemplo, são introduzidos organismos geneticamente modificados ou produtos químicos no ambiente, cujos efeitos podem ser potencialmente danosos ou quando ainda não há condições de provar que são seguros do ponto de vista eco-sociossanitário. Iniciativas como esta, que oferecem milhões de dólares para o desenvolvimento de pesquisas, podem gerar, por exemplo, a perspectiva de desenvolvimento de novos produtos químicos a serem utilizados no controle de vetores, perpetuando um modelo de controle de endemias vetoriais que vem sendo utilizado há muito tempo, mas cujos resultados não são os mais satisfatórios por não controlarem efetivamente a doença, ou por acarretarem novos riscos para a saúde humana e ao ecossistema. Existem alternativas, ainda pouco priorizadas pelos órgãos governamentais, que incluem um manejo ambiental integrado e ecologicamente sustentável para doenças transmitidas por vetores. Deve-se estimular estratégias que priorizem o controle integrado de vetores, utilizando recursos da própria natureza e das redes sociohumanas, sociotécnicas e socioinstitucionais, que incluam ainda uma perspectiva de intervenção de saneamento e de manejo sustentável do meio ambiente, de educação e comunicação social, que podem orientar ações muito mais efetivas e promotoras da qualidade de vida das populações vulneráveis. As relações entre o processo saúde-doença e o meio ambiente são de natureza complexa. Ao reforçar, mesmo que indiretamente, a idéia de que a erradicação de determinadas espécies pode resolver problemas de saúde, comete-se um grande equívoco de estratégia. De fato, esses "desafios globais" apenas repetem velhas estratégias já demonstradas como pouco efetivas, pois invariavelmente terminam por reduzir a complexidade dos fenômenos socioambientais. Ao final do século XX, já estava claro para a ciência que iniciativas que abarcam apenas uma dimensão do fenômeno, sem atentar para as inter-relações dos múltiplos elementos e de suas condições de contexto, ou são engodos destinados ao fracasso ou visam a outros interesses que não os essencialmente de proteção da qualidade da vida e do meio ambiente. E, em muitos casos, transformam questões que são essencialmente sociais e políticas em questões puramente técnicas, inventando novas formas de exploração da natureza que retornam na forma de novos riscos para a saúde humana, como, por exemplo, afetando os sistemas endocrinológico, neurológico, hematológico etc. As questões de saúde relacionadas com endemias vetoriais devem ser enfrentadas sem que se perca de vista suas dimensões históricas, culturais, sociais, biológicas e ecológicas. Os vetores não podem ser tratados com estratégias de guerra, como até agora vem sendo feito, como se fossem inimigos a serem dizimados. De um modo geral, os desequilíbrios ecoló-
doi:10.1590/s0102-311x2004000400029 pmid:15300307 fatcat:5ahciu3qqjberodzsinu2lalau