O normal e o patológico
Brachinha Vieira
2018
Revista Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental
Ao empreender um estudo comparativo de inúmeros mitos e religiões, Mircea Eliade concluiu que cada cultura instaura um eixo orientador das suas crenças e garante dos seus valores, que esse eixo ideal deve materializar-se (enquanto árvore, liana, pilar, escada, etc.), e marca o umbigo, o centro do cosmos 1 . O axis mundi desenha uma linha vertical que sobe às alturas mais elevadas do céu e desce às profundidades mais inacessíveis da terra e assegura a unidade de todos os elementos cósmicos ou,
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... termos literários, a coesão da Máquina do mundo, afirmando-a e centrando-a no meio do espaço habitado. Esse ponto, esse ômphalos ou umbigo da Coisa, era representado materialmente pelos Gregos dos séculos arcaicos e clássicos. Alguns situavam-no na ilha de Delos, onde nascera Apolo; outros supunham-no situado em Delfos, onde o podemos ver ainda, no lugar em que Apolo matou a serpente Píton, roubando-lhe os dons divinatórios. Em redor do ômphalos, sítio em que o eixo do mundo interceta a terra, constrói-se um cosmos, uma parcela organizada de espaço e tempo subtraída ao caos pelo poder edificador da cultura. Toda a distinção entre pertença e não-pertença, entre nós e eles, normal e não normal, se estabelece em referência a esta cosmização do espaço (assinalada pela fronteira) e do tempo (atribuída pelo calendário), em desafio às forças desagregadoras do caos, que, para os Gregos Antigos, era um deus poderoso -talvez o mais poderoso, ao qual tudo voltava -cujo nome se escrevia com maiúscula e cuja presença devia ser tão venerada quanto as de Zeus e das Moiras, divindades do destino. Se um cidadão da polis partisse em viagem, à medida que se afastasse do centro encontraria, logo depois dos hellene, os barbaroi, e a seguir a estes os selvagens. Continuando o seu trajeto em direção centrífuga, passaria ao domínio dos monstros, que se tornavam eles próprios cada vez mais disformes e distantes do padrão humano. Ulisses, à medida que a frota, movida por tempestades, se afastava da Grécia, encontrou sucessivamente os Lotófagos, ainda de aparência humana, os Lestrigões, que eram gigantes antropófagos, e os Ciclopes (como o Polifemo da * Correspondência: bracinha.vieira2018@gmail.com Odisseia) que guardavam dos humanos traços básicos, mas refletiam uma teratologia da humanidade. No limite, encontravam-se as Fórquias, monstros desconjuntos que partilhavam um olho único. Assim, entre o axis mundi e o caos, a normalidade exemplar do centro ia-se diluindo e fragmentando, e ao longo desse itinerário os habitantes da terra desnaturavam-se e desumanizavam-se -e não esqueçamos que o sofista Protágoras, fundador tutelar da antropologia, declarara «o homem como medida de todas as coisas». Os monstros extremos indicavam um domínio ameaçador, espaço no qual a intrusão significava transgressão e risco. No limite, o explorador grego decidido a desafiar toda a prudência e ir além de todas as esferas encontraria o caos, soçobrando no abismo. Todo este itinerário forma um gradiente e, se ao longo do percurso o padrão normal se identifica com as normas do grupo, o não normal toma configurações diversas e cada vez mais assustadoras. Ora, o que se passa com a aparência morfológica tinha equivalente na vivência destes seres conjeturais que habitavam o imaginário dos Gregos dos grandes séculos: a enormidade, a disformidade, a fealdade relacionavam-se com os pensamentos torvos, a violência, a índole sub-humana, os impulsos animais. Em antinomia, Platão e os escultores gregos da época clássica reuniam o bom, o belo, o justo, o heroico, o digno, nos seus modelos. Os médicos romanos reconheceram, em prol da administração eficaz da justiça, distintos grupos de anormais: os fatui, os mentecapti e os furiosi. Entretanto, desde Teofrasto, o sucessor de Aristóteles, a ciência do mundo ocidental distinguiu e codificou diversos tipos de carateres humanos. Todos estes perfis de homens eram singulares, sem que fosse dito se transbordavam do normal. Foi com a Revolução Francesa e logo a seguir a ela, com Pinel, Esquirol e os seus seguidores dentro e fora de França, que a ciência moderna em construção se deu ao estranho trabalho de delimitar, caracterizar, catalogar e denominar os desvios, trabalho que não cessou até aos nossos dias, em continuidade, é certo, mas ensaiando sempre novos critérios, argumentos e métodos. Várias escolas de psicologia patológica deram definições e traçaram os limites de muitas formas de desvio. É in-
doi:10.51338/rppsm.2018.v1.i3.80
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