Boletim do Tempo INTELECTUAIS, ARTISTAS E REVOLUCIONÁRIOS: O CINEMA MILITANTE NO BRASIL E NA ARGENTINA NOS ANOS 1960 E 1970

Por Maria, Paula Araujo
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O presente trabalho faz parte de uma pesquisa em andamento que visa estudar, de forma comparativa, a história e a memória das ditaduras militares no Brasil e na Argentina, enfocando principalmente grupos e movimentos de esquerda [1]. Nas décadas de 1960 e 70 muitos intelectuais e ativistas políticos de esquerda acreditaram que o mundo estava às portas de uma conjuntura revolucionária. Contribuíram para esta avaliação a emergência política do chamado Terceiro Mundo, as guerras de libertação
more » ... colonial, a revolução cubana, a guerra do Vietnã, as rebeliões estudantis e a irrupção de revoltas políticas e processos revolucionários em várias partes do mundo. Em tal conjuntura, a arte era vista como um importante instrumento de conscientização política e veículo de propaganda da revolução. Filmes, peças de teatro, músicas, pinturas, desenhos poderiam (e deveriam) ser utilizados como instrumentos de agitação e propaganda política, de conscientização, e de produção de uma consciência política revolucionária. A arte poderia ser um potente instrumento a serviço da revolução. Mas as formas de utilização deste instrumento não eram unânimes e produziram polêmicas e debates entre intelectuais, artistas e militantes políticos. O objetivo deste trabalho é rever esta discussão e analisar algumas de suas produções artísticas. Uma parte, portanto, da criação artística deste período, deve ser analisada a partir desta relação com a proposta da revolução. Este processo foi particularmente expressivo na América Latina, onde diversas formas de produção artística foram permeadas pelo propósito de construção de uma arte que almejava ser engajada, combativa, conscientizadora. Vamos Boletim do Tempo Presente -ISSN 1981-3384 Boletim do Tempo Presente, nº 01, de 06 de 2012, p. 1 -17, | http://www.seer.ufs.br/index.php/tempopresente centrar nossa discussão aqui no cinema militante produzido no Brasil e na Argentina nas décadas de 1960 e 70. Estamos chamando de cinema militante uma produção cinematográfica cujo principal objetivo era interferir politicamente em sua época. Filmes produzidos por cineastas organizados em diferentes tipos de coletivos, geralmente com algum tipo de vinculação a um movimento social (como "os filmes da UNE") ou a um partido ou movimento de esquerda (como os cineastas argentinos ligados ao ERP, a organização armada Ejército Revolucionário del pueblo). O termo "cinema militante" é, sem dúvida, precário e ambíguo, mas creio que permite uma aproximação mais consistente do objeto do que outras denominações. Em primeiro lugar, o termo é, muitas vezes, usado pelos próprios cineastas e participantes dos grupos/movimentos em questão. Seu trabalho é considerado por eles como uma militância política. Por isso ele é mais adequado do que, por exemplo, o termo "cinema revolucionário", muito mais abrangente e polêmico. A proposta de um cinema revolucionário implicou em discussões mais profundas sobre forma e conteúdo, sobre o próprio sentido do que seria revolucionário na arte. Por outro lado o termo "cinema político" é muito vago, podendo designar qualquer intenção política de qualquer tipo de filme. Por isso optamos pelo termo "cinema militante" porque seu exercício expressa algum nível de prática e militância política, organizada em algum tipo de coletivo. O filme como documento. O filme é um documento de sua época. Marc Ferro foi um dos primeiros a dar ao filme o estatuto de fonte histórica[2]. Neste caso o "filme é abordado não como uma obra de arte mas como um produto, uma imagemobjeto, cujas significações não são somente cinematográficas. Ela vale por aquilo que testemunha".[3] Ferro também nos mostrou um caminha metodológico. Ele propõe que a análise do filme-documento deve mesclar os elementos do filme (como a montagem, as imagens, o som) com os elementos exteriores ao filme: "Analisar no filme principalmente a narrativa, o cenário, o texto, as relações do filme com o que não é o filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime. Pode-se assim esperar compreender não somente a obra como também a realidade que representa".[4] Boletim do Tempo Presente -ISSN 1981-3384 Boletim do Tempo Presente, nº 01, de 06 de 2012, p. 1 -17, | http://www.seer.ufs.br/index.php/tempopresente A historiadora Mônica Kornis salienta o fato que, para Ferro, a análise de um documentário requer operações diferentes da análise de um filme ficcional. O documentário exige duas operações distintas: o estudo e a crítica dos documentos utilizados no filme, e a crítica de sua inserção no filme, que não é necessariamente contemporânea da produção do filme.[5]. A isto ainda se somaria, como elemento complexificador, a introdução de entrevistas que se realizam durante a execução do filme. A produção dessas entrevistas também deve ser incorporada à análise do filme. O filme-documentário, portanto, deve ser encarado como uma representação/construção da realidade na qual texto, contexto, montagem, fabricação e atores (produtor, diretor, narrador, entrevistados, atores, personagens e o próprio público) se entrelaçam para compor um rico documento histórico. O cinema militante tem uma especificidade interessante: ele produz tanto documentários como filmes de ficção e, em alguns casos, mistura deliberadamente os dois gêneros. No caso do cinema militante do Brasil e da Argentina, seus filmes e documentários permitem a análise de idéias políticas e estéticas da época. Mas não apenas: a organização dos grupos e coletivos de cineastas, suas trajetórias, alguns aspectos técnicos da produção e a forma com que eram distribuídos e exibidos estes filmes também fornecem importantes elementos para uma compreensão mais profunda da época. Discutiremos aqui alguns filmes que serão abordados como documentos, como fontes primárias: os filmes brasileiros "Cinco vezes favela", filme produzido pelo CPC da UNE (que será também cotejado com o filme "Cinco vezes favela, agora por nós mesmos", produzido em 2010) e "Cabra marcado para morrer", de Eduardo Coutinho (filme feito em duas etapas, a primeira iniciada em 1964, mais tarde retomado e finalizado em 1984). Os filmes argentinos analisados serão: "La hora de los hornos" de "Pino" Solanas, lançado em 1968 e extratos de filmes documentários de Raymundo Gleyzer, realizados no início dos anos 1970, produzidos pelo Cine de La Base.. Utilizaremos também, na discussão sobre Raymundo Gleyzer, o documentário "Raymundo", de Ernesto Ardito e Virna Molina. Breve apresentação de nossos personagens: os cineastas e seus filmes. Na Argentina dois grupos de cinema militante se destacaram entre o final dos anos 60 e meados da década de 70: o Cine Liberatión e o Cine de La Base. O grupo Cine Liberación é mais conhecido: seu fundador e principal representante, Fernando "Pino" Solanas, ainda é Boletim do Tempo Presente -ISSN 1981-3384 Boletim do Tempo Presente, nº 01, de 06 de 2012, p. 1 -17, | http://www.seer.ufs.br/index.php/tempopresente extremamente atuante politicamente. "La Hora de los Hornos", de Solanas foi lançado em 1968 (após três anos de filmagens). Seu objetivo era fazer uma denúncia política do imperialismo, da situação de dependência dos países latino-americanos e da cumplicidade da burguesia proprietária de terras e de gado. Um filme contra o imperialismo. O objetivo do filme não era apenas a denúncia; ele pretendia mostrar a situação de exploração e miséria; explicá-la em suas causas econômicas e políticas e, ao final, apontar a possibilidade de saída desta situação através da revolução. O filme mostra, com imagens poéticas, a população pobre e mestiça das áreas rurais do norte da Argentina em oposição aos ricos habitantes de Buenos Aires, apresentada como "una ciudad blanca en un pais mestiço". Denuncia a exploração econômica e política e também a dominação cultural, a submissão de intelectuais e artistas argentinos a um ideal "universal" que nada mais seria do que a reprodução dos valores estéticos e morais da dominação imperialista. O filme denuncia também o papel repressivo da Igreja Católica desde a colonização espanhola.
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