A Pediatria na Geração do Milénio
Ana Serrão Neto
2017
Acta Pediátrica Portuguesa
Acta Pediátrica Portuguesa 199 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Os pediatras são hoje em dia chamados a aconselhar e dar opinião sobre temas diversos, fora do core da sua formação, essencialmente biomédica. São exemplos os leites e papas biológicos, o baby led weaning, as dietas sem leite ou vegetarianas, os mais diversos problemas comportamentais, a escolha da escola e diferentes tipos de pedagogia. Estes são alguns dos temas que os pais da geração do milénio debatem com os pediatras.
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... que esta geração é a que possui maior literacia em saúde. São, portanto, dois novos problemas com que os pediatras têm de lidar: assuntos psicossociais e de comunicação. Terminei o internato de pediatria médica em junho de 1990. De então para agora muita coisa mudou na patologia pediátrica, na sociedade e, por conseguinte, na postura dos pais e dos médicos. A minha geração teve uma formação clínica riquíssima. Os longos anos de estágio enquanto esperávamos pelo exame de acesso à especialidade deu-nos um amplo traquejo clínico e, no meu caso particular, o internato de cinco anos no Hospital de Dona Estefânia (HDE), numa época em que na zona de Lisboa apenas existiam o HDE e o Hospital de Santa Maria, permitiu-me observar milhares de doentes. Sem dúvida que tivemos oportunidade de beneficiar de uma excelente formação biomédica. Nesse tempo predominava a criança como ser biológico, aprendíamos essencialmente fisiopatologia. É verdade que a pediatria social já era uma preocupação de alguns pediatras, e que desde esse tempo há uma secção dedicada à pediatria social dentro da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), mas as preocupações estavam essencialmente relacionadas com a evolução da criança em meios adversos e no modo de ajudar a criança a potenciar o seu desenvolvimento apesar de, por exemplo, sofrer maus tratos, má nutrição ou viver em meios economicamente desfavoráveis. Provavelmente sob a influência da pediatria social, mas também decorrente da evolução da nossa sociedade e da nossa abertura à Europa e ao mundo, as preocupações humanistas entraram também no quotidiano do pediatra. Recordo, por exemplo, a Carta da Criança Hospitalizada, de 1988, patrocinada pelo Instituto de Apoio à Criança, que veio permitir a estadia dos pais junto dos filhos. Recordo a mudança na prática de enfermagem, ao passar a explicar às crianças o procedimento de colheita de sangue ou a preparar a criança para uma cirurgia. E recordo a mudança na tradicional postura paternalista na comunicação com os pais. O humanismo nos cuidados médicos levou ao esforço de comunicarmos melhor com os pais das crianças doentes. Nos anos 2000 começou-se a falar em comunicação clínica. É já no meu tempo de assistente hospitalar que o termo biopsicossocial entrou no dicionário quotidiano do pediatra. O modelo biopsicossocial é um conceito amplo que estuda a causa ou o progresso de doenças utilizando fatores biológicos (genéticos, bioquímicos, entre outros), fatores psicológicos e fatores socioculturais. Nesta perspetiva, a doença ocorre não apenas por fatores biológicos, como vírus, genes ou anomalias de órgão, mas também por fatores psicológicos e sociológicos. Há uma visão holística do indivíduo no seu ambiente e no seu estado emocional, sem negar o fator biológico, onde a maioria das doenças se manifesta. A atual geração de pais, a geração do milénio, é uma geração muitíssimo exposta à informação, em que a comunicação é fácil por diversas formas, que utiliza as redes sociais, com reflexo na tomada de decisões, exigente, predisposta à inovação, com preocupações ambientais e de saúde, com hábitos fortes de consumo. Tem um nível de escolaridade superior ao das gerações anteriores, vive num ambiente individualista, competitivo, volátil, de mudança rápida, com índices de divórcio a rondar os 50%. Ao longo dos anos 2000, os conhecimentos dos pais em saúde evoluíram, começou-se a falar em literacia em saúde, em empowerment dos doentes e em comunicação clínica. A Direção-Geral da Saúde entende a literacia em saúde como a capacidade para tomar decisões informadas sobre a saúde, na vida de todos, e também naquilo que diz respeito ao desenvolvimento do sistema de saúde, na medida em que contém elementos essenciais do processo educativo que são de grande importância para a promoção e proteção da saúde da população. Ou seja, o nível de literacia em saúde é benéfico para a promoção da saúde e está naturalmente associado a uma maior utilização de todos os meios para a procura de informação sobre saúde. Mas, como consequência, a autoridade "natural" do médico é muitas vezes posta em causa, a confiança acrítica deixou de existir, os pais têm sugestões alter-EDITORIAL / EDITORIAL EDITORIAL
doi:10.21069/app.2017.12261
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