REDE GEOGRÁFICA
Leila Christina Dias
2020
GEOgraphia
Nas últimas décadas, a larga difusão do termo rede aponta para uma agenda de pesquisa que reúne propostas, significados e abordagens disciplinares diversas: as redes técnicas dos engenheiros e dos geógrafos, a Análise de Redes Sociais dos sociólogos e antropólogos, a Teoria Ator-Rede para pensar o surgimento dos híbridos, as redes urbanas e o territóriorede dos geógrafos constituem apenas alguns exemplos das representações que vêm sendo associadas a rede pelas Ciências Humanas. Todas essas
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... s coexistem, e o grande número de usos da noção de rede abre espaço para mal-entendidos. Contudo, há também espaço para a compreensão, resultante do diálogo entre o Eu e o Outro. A condição para avançar no conhecimento dos sentidos de rede geográfica é lançar luz sobre a pluralidade de usos -conceitual, metafórico e metodológico -numa perspectiva epistemológica que pensa a construção dos conceitos como fruto de interações entre campos e com a 'realidade' num movimento histórico perene. A ideia de rede não é recente e esteve historicamente vinculada à de organismo e técnica. Embora o termo ainda não existisse, desde a antiguidade a rede aparece como técnica de tecelagem composta de fios regularmente entrelaçados, servindo para capturar pequenos animais. Foi a medicina de Hipócrates no século V a. C. que associou à rede a metáfora do organismo. Essa associação atravessa toda a história das representações de rede, para designar tanto o corpo na sua totalidade -como organizador de fluxos ou de tecidos -quanto uma parte sua, notadamente o cérebro. A grande ruptura que introduz novo conceito de rede acontece na segunda metade do século XVIII e se caracteriza pela sua 'saída' do corpo. Desde então, a rede não é mais somente observada sobre o corpo humano -como malha ou tecido -ou no seu interior. Ela pode ser objetivada como técnica -infraestrutura rodoviária, estrada de ferro, telegrafia, modificando a relação com o espaço e com o tempo. Se até aquele momento a história da rede esteve ligada a uma referência ao organismo, a partir de então estaria também ligada a uma referência à técnica. O conceito moderno de rede se forma na filosofia de Saint-Simon e está inscrito no projeto dos chamados socialistas utópicos. Claude-Henri de Rouvroy, ou Conde de Saint-Simon, nasceu em Paris, cerca de 30 anos antes da Revolução Francesa. Largamente influenciado pelas ideias iluministas -foi discípulo de D'Alemberto filósofo e economista francês defendeu a criação de um Estado organizado racionalmente por cientistas e industriais. Na obra Le Nouveau Christianisme (1825) ele formulou a moral dessa nova sociedade desenvolvendo temas que davam sustentação à escola socialista, fundada por seus discípulos (economistas, engenheiros, industriais e banqueiros). A problemática teórica, política e prática à qual respondiam os textos de Saint-Simon pode ser sintetizada na indagação sobre como atingir o novo sistema social que a Revolução Francesa trazia consigo: como completar a Revolução. Para tanto, ele partiu da ideia de que o corpo surge como uma vasta rede de redes, formada por canais e vasos atravessados por fluidos e fluxos; em continuidade com os organismosredes da natureza que o rodeiam, o organismo-rede humano garante a circulação dos fluidos, portanto da vida. Quando a circulação é suspensa, o corpo humano se solidifica e morre. Graças a essa analogia de organismorede, Saint-Simon dispôs de uma ferramenta de análise para conceber uma ciência política e formular um projeto de melhoria geral do território da França, que consistia em traçar sobre seu território (organismo) as redes
doi:10.22409/geographia2020.v22i49.a47614
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