A reemergência do vírus Rocio no Brasil
Andressa de Sousa Neves, Carla Jorge Machado
2016
Revista da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba
Nas últimas décadas, foram descobertas várias infecções virais até então desconhecidas, assim como reemergiram outras que haviam sido controladas ao longo dos anos. Em sua maioria, essas viroses atingiram a espécie humana por conta de atividades modificadoras do meio ambiente, migrações populacionais e novos padrões genômicos gerados a partir de mutações e recombinações genéticas. 1 O vírus Rocio (ROCV), descoberto no Brasil nos anos 1970, é classificado como pertencente à família Flaviviridae
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... gênero Flavivirus (grupo B dos arbovírus, do inglês arthropod born virus). Esse grupo viral relaciona-se com encefalites, doenças hemorrágicas e hepáticas que acometem humanos e outros vertebrados. Dentro desse gênero, existem 13 tipos virais já reportados no Brasil: ROCV, YFV, ILHV, BSQV, SLEV, CPCV, Dengue 1 (DENV-1), Dengue 4 (DENV-4), Dengue 2 (DENV-2), Iguape (IGUV), Naranjal (NJLV), Dengue 3 (DENV-3) e Culex (CXFV). 1 O ROCV é esférico, envelopado e possui nucleocapsídeo contendo RNA de fita simples e polaridade positiva, o que significa que seu RNA viral serve como RNAm para a síntese de proteínas virais e pode ser traduzido imediatamente após infecção da célula hospedeira. Seu genoma, de aproximadamente 11kb, decodifica proteínas estruturais (capsídeo, membrana e envelope) e monoestruturais (NS1, NS2A, NS2B, NS3, NS4A, NS4B, e NS5). 2 Os primeiros casos registrados de vítimas humanas do ROCV no Brasil surgiram durante uma epidemia de encefalite viral que durou cerca de dois anos, na década de 1970, na região Sudeste. As primeiras infecções foram reportadas no Vale do Ribeira e na Baixada Santista por volta de 1974. Foram detectados 1.021 casos de encefalite por arbovírus, com incidência maior em homens jovens; 100 mortes, e mais de 200 pacientes sobreviventes, mas com graves sequelas. Durante o surto, o vírus foi isolado a partir de um paciente com sintomas de meningoencefalite, do pássaro Zenothrichia capensis e do mosquito Psorophora ferox. Estudos sugeriram que a transmissão do vírus ocorre pela picada de mosquitos do gênero Aedes, Psorophora e Culex, e que os reservatórios naturais são pássaros silvestres como Zenothrichia capensis, responsáveis pela manutenção do ciclo viral do ROCV. Após o período de incubação, que variava de 7 a 14 dias, os doentes apresentavam inicialmente febre, cefaleia, anorexia, náusea, vômitos, mialgia e mal-estar, e progrediam para sintomas tardios indicativos de encefalite, como confusão mental, distúrbios motores, irritação meníngea, síndromes cerebelares e convulsões. Outros sintomas incluíam distensão abdominal e retenção urinária. As sequelas variavam de distúrbios sensitivos e motores a distúrbios de equilíbrio, disfagia, incontinência urinária e problemas de memória. 3 Embora surtos subsequentes não tenham ocorrido, houve evidências sorológicas da circulação do vírus em diferentes regiões do país. A primeira infecção após o primeiro surto foi detectada a mais de 2.000 quilômetros do Vale do Ribeira, 34 anos seguintes à epidemia, na cidade de Manaus. Foram avaliadas amostras de fluido cerebrospinal de dois pacientes com meningoencefalite -que curiosamente também tinham AIDS -a partir das quais o genoma do ROCV foi amplificado por RT-PCR. Recentemente, em 2004, dois pássaros capturados na Região Sul do Brasil também tinham anticorpos contra ROCV. 2 Em 2009 e 2010, em 760 amostras de sangue de equinos coletadas no Pantanal, 396 (52,1%) foram positivas para anticorpos antiflavivirus com o teste ELISA. No mesmo estudo, o uso de PRNT90 indicou que 130 animais (17,1%) tinham atividade neutralizante contra ROCV. 1 Em estudos anteriores, não havia evidência sorológica do ROCV nessas regiões, o que sugere introdução recente do vírus nessas áreas. Estudos sorológicos devem continuar sendo feitos para o monitoramento do vírus, assim como especial atenção deve ser dada ao diagnóstico de viroses nessas regiões. A epidemiologia da doença permanece um mistério, assim como as causas de aparecimento e desaparecimento do ROCV, mas a possibilidade de uma nova epidemia tem motivado pesquisadores a buscar os mecanismos de infecção
doi:10.5327/z1984-4840201623881
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