Por amor à arte
Leyla Perrone-Moisés
2005
Estudos Avançados
335 UERO PRIMEIRAMENTE agradecer o convite tão honroso de vir aqui falar sobre um tema que para mim é novo. Nunca fiz conferência sobre mim mesma, e isso me embaraça um pouco porque, como crítica, gosto muito de falar dos outros, dos escritores. De mim mesma, não gosto muito de falar. Outra coisa que não é muito do meu agrado é fazer revisões, voltar ao passado. Quando alguém diz "vamos ouvir essa música, que é do nosso tempo", não gosto. Meu tempo é hoje. Portanto, é assim com um movimento
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... o, de vago embaraço e de satisfação real, que me vejo acolhida aqui na Academia, uma honra muito grande. Agradeço muito aos acadêmicos, em especial a Antonio Carlos Secchin, organizador deste ciclo. Por outro lado, espero não aborrecê-los com o tema desta conferência. Não será propriamente uma conferência. Vou falar de modo informal, seguindo algumas anotações, e de vez em quando vou ler um trecho escrito, porque em algumas ocasiões já tive de escrever sobre alguns aspectos da minha carreira intelectual. Todo autor de biografia tende a começar pela infância. Na autobiografia intelectual, necessariamente, são os primeiros livros, as primeiras leituras. O primeiro livro que li na minha vida, aos cinco anos, se chamava Rosa Maria no Reino Encantado, de Érico Veríssimo. Portanto, comecei bastante bem. Tenho ainda esse livro, em que inscrevi meu nome com umas letrinhas tortas. Logo em seguida, passei para Monteiro Lobato. Sobre isso, vou dizer algumas coisas porque, se não são importantes, pelo menos formam uma figura. Passei a minha infância numa cidadezinha de Minas Gerais, Passa-Quatro, num vale da serra da Mantiqueira, perto de São Lourenço, no circuito das águas. A família italiana do meu pai, Perrone, tinha imigrado para lá no fim do século XIX. Nasci em São Paulo, porque minha mãe era paulista, mas passei onze anos da minha vida naquela cidadezinha. Em casa, tínhamos um quintal muito grande, com muitas árvores frutíferas, e levávamos uma vida quase que de sítio. Então li Monteiro Lobato num contexto de Sítio do Pica-Pau Amarelo, porque lia seus livros em cima de uma árvore, uma amoreira que eu considerava minha. Subia, sentava-me num galho lá em cima, e assim li todo o Monteiro Lobato. Não havia o Rabicó, mas havia as galinhas etc. E eu tinha uma tia Anastácia, porque a cozinheira era uma negra muito escura que, de um modo politicamente incorreto, tinha o apelido de Vavão. Era como nós, crianças, pronunciávamos "carvão". Mas acho que foi ela mesma que se auto-apelidou Vavão. Por amor à arte LEYLA PERRONE-MOISÉS * Q * Depoimento dado durante o III Ciclo de Conferências "Caminhos do Crítico", na Academia Brasileira de Letras, em 24 de maio de 2005. Minha mãe, como todas as mulheres de sua geração, admirava muito a França, embora não falasse francês, e achava que o ideal era que uma futura moça falasse francês e tocasse piano. Então, tive aulas de francês desde os sete anos de idade, e de piano também. O piano não deu em nada. O francês continuou. O interessante, agora que vejo retrospectivamente, é que, além dessa cozinheira, eu e meu irmão tínhamos uma babá, que era filha da cozinheira e do meu professor de francês. Ele se chamava Ulysse Courbassier. Era um Ulisses que não tinha voltado da viagem. Tinha ido parar, não sei como, lá na serra da Mantiqueira, e tinha tido uma filha com aquela Vavão. Portanto, parece que o meu destino França-Brasil já estava ali, porque a minha babá era franco-brasileira. Era só isso que eu queria dizer da minha infância. Continuando esta "terapia de vidas passadas", vou falar agora de minha adolescência. Meu projeto de vida não era escrever, era pintar. Eu queria ser pintora. E até fui, pelo seguinte: freqüentei vários cursos livres de belas-artes, desde os catorze anos. Naquela década de 1950, começaram as bienais de São Paulo. Para mim, como para toda a gente, foi uma revelação da arte do mundo, da arte moderna. Eu ia ver as bienais, e escrevia minhas impressões num caderninho. Anotei o nome de um pintor de que eu tinha gostado muito: Samson Flexor. Pouco depois, fiquei excitadíssima quando soube que ele morava em São Paulo e dava aulas de pintura. Meus pais, felizmente, sempre encorajaram tudo que fosse cultura, arte. Eu lhes pedi para ter aulas com o Flexor. Assim, aos dezesseis anos, eu já fazia parte de algo que agora é um capítulo da história da pintura moderna brasileira: o Ateliê Abstração de Samson Flexor. Eu era a mais jovem do grupo. Como participante do Ateliê, expus em duas bienais de São Paulo, na quarta e na quinta, quando havia júris, junto com os maiores nomes de artistas plásticos do país. Tudo isso hoje me parece quase impossível -por isso disse que este depoimento se parece com uma terapia de vidas passadas. Mas os catálogos das bienais estão lá, para quem os quiser ver. Participei de várias exposições coletivas do Ateliê Abstração, uma delas em Nova York, e fiz uma exposição individual na Galeria da Folha. Depois de alguns anos, de repente, a pintura acabou. Ao mesmo tempo, a paixão pela literatura nasceu e cresceu. Quando a pintura acabou, eu já estava no fim do curso de Letras. Eu teria preferido ir para a Escola de Belas-Artes, mas meus pais me disseram: "Pintora não é profissão!" Eles se enganavam muito porque, se eu fizesse sucesso, ganharia muito mais do que como professora de Letras. Então disseram: "Pagamos o curso de pintura, mas faça um curso que dê uma profissão, você gosta de literatura, então faça Letras". Em dezembro de 1958, mandei uma resenha de um livro francês para o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, e foi aceita. Era sobre La modification, de Michel Butor. Continuei fazendo resenhas de livros franceses no Suplemento Literário. Era uma etapa que começava e foi importantíssima para a Recebido em 28.8.05 e aceito em 30.8.05.
doi:10.1590/s0103-40142005000300025
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