Epidemiologia e profilaxia da moléstia de Chagas

Francisco Antonio Cardoso
1940 Revista de Medicina  
Estudaremos, na aula de hoje, a epidemiologia e profilaxia da moléstia de Chagas. Vamos nos ater principalmente a esses dois aspectos do problema, não tratando, senão de modo accessório, de assuntos que constituem o objeto de outras cadeiras da Faculdade, como por exemplo a clínica, a anatomia patológica e outros. Duas são. as tripanosomoses humanas conhecidas até. o presente: a tripanosomose africana e a tripanosomose americana, que tomam essas designações dos continentes onde existem,
more » ... vamente, África e América. Apenas nos apresenta interesse imediato a tripanosomose americana, visto como a outra, a moléstia do sono, é privativa do continente africano. Assim sendo, limitemos o nosso estudo à tripanosomose americana. SINONÍMIA i As denominações comumente usadas para a moléstia que ora nos ocupa são: tripanosomose ou tripanosomíase americana e moléstia de Chagas, representando esta última justa homenagem à memória do seu descobridor. Outras designações atualmente se tornaram obsoletas ou impróprias e apenas merecem consignadas. São elas: moléstia de Cruz, e Chagas, doença do "barbeiro", tireoidite parasitária, ètc. HISTÓRICO Veremos, com alguns pormenores, a história das principais etapas que resultaram no esclarecimento das diferentes questões atinentes à moléstia, porque esse retrospecto se nos apresenta cheio de ensinamentos, fazendo ressaltar a obra genial desse grande investigador patrício que foi o Professor Carlos Chagas. (*) Aula dada aos alunos do 5.° ano da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (1940)-. , • REVISTA DE MEDICINA -31 OUTUBRO 1940 Em 1907, o Dr. Oswaldo Gonçalves Cruz, diretor do Instituto Oswaldo Cruz, encarregou o assistente desse Instituto, íE)r. Carlos Chagas, de realizar uma campanha anti-palúdica, no norte do Estado de Minas Gerais, zona em que se construía o prolongamento da. Estrada de Ferro Central do Brasil. a Nessa região, foi Chagas informado da presença de um inseto íiematófago domiciliar, vulgarmente chamado "barbeiro", que infestava as habitações toscas dos< moradores do lugar. Encontrava-se o "barbeiro", em maior abundância, nas casas de pau a pique, de paredes não rebocadas. Ò inseto ocultava-se nos inumeráveis orifícios e frinchas das paredes e do teto, de onde saía, em grande número, após o apagar das luzes, para exercer o seu hematofagismo, picando os indivíduos, durante o sono. Teve Chagas (1) a idéia de examinar o conteúdo intestinal, de alguns desses hemípteros, encontrando, nesse material, a presença de numerosos protozoários flagelados, com a morfologia de critídia. Enviou, então, alguns desses insetos para o Instituto Oswaldo Cruz, onde Cruz fê-los picar um macaco, Callithrix penicillata. Após 20' ou 30 dias, Chagas (1) (2) verificou a presença de numerosos'tripanosomas, no sangue periférico desse macaco. -Esse tripanosoma. apresentava morfologia inteiramente diferente das espécies até então' conhecidas, do gênero Trypanosoma. Em pesquisas logo depois realizadas, determinou Chagas (1) a capacidade infectante desse tripanosoma não só para macacos do gênero Callithrix como para cobaias, coelhos e pequenos cães. O novo tripanosoma foi denominado, por Chagas (1), Trypanosoma crusi, em homenagem "a Oswaldo Cruz. Encorajado por esses resultados, voltou Chagas à mesma *região\ do Estado de Minas Gerais, com o fito principal de procurar o hospedeiro vertebrado do tripanosoma recém-descoberto. Examinando o sangue de um gato pertencente aos moradores de uma casa em que abundavam os "barbeiros", encontrou o mesmo hemoflagelado (Chagas, 1). Nessa mesma casa, dias após, pelo exame a fresco do sangue de uma criança febril, com sinais de infecção aguda,. encontrou grande número de flagelados, que puderam ser facilmente identificados aos que haviam sido transmitidos aos animais de laboratório, pelo "barbeiro" (Chagas, 1). Estava assim diagnosticado, pela primeira vez, um caso humano de tripanosomose americana. Chagas continuou seus estudos, esclarecendo muitos aspectos da nova doença. A êle são devidas as. noções básicas/ sobre a histopatologia, a sintomatologia e as formas clínicas dessa moléstia. Com a publicação, em 1909, do trabalho de Chagas (1) -"Nova tripanozomíaze humana" -em que êle expõe os magníficos resultados das suas primeiras investigações, nasceu um capítulo até então inédito na patologia tropical* Digno de registo é o fato, que nos parece ímpar não só na medicina brasileira senão mesmo na medicina mundial, de haverem sido
doi:10.11606/issn.1679-9836.v24i82p49-75 fatcat:fxo4umws3rgyjpjocn6akn5oha