Cuja redacção beneficiou das críticas e sugestões do Prof. Adérito Sedas Nunes e de outros amigos (

Maria Mónica, Maria De Fátima Patriarca, António Barreto, Manuel Braga Da Cruz, Francisco Cabral
1991 Análise Social   unpublished
Salazar, a «fórmula» da agricultura portuguesa e a intervenção estatal no sector primário PREFÁCIO Este artigo está desactualizado, é de amador, versando um tema que excede a minha competência, e, salvo no que diz respeito à doutrina e à legislação salazaristas, só usa fontes secundárias. Mas parece-me que tem um fio de voz insinuante (haverá quem diga insidioso) e que a combinação dos seus óbvios defeitos talvez contribua para atrair alguns leitores, em vez de os afugentar, justificando o
more » ... esse da Análise Social na sua publicação. Não tendo ousado propô-la, devo confessar que me apressei a aceitar o convite, pelo que devo explicações. Quanto à desactualização, trata-se de um escrito de 1981-82, o qual, como adiante se verá, nem sequer estava para ser artigo; e sai agora sem nenhuma alteração substancial nem qualquer prolongamento dando conta do que entretanto aconteceu 1 . Ora aconteceu, por exemplo, nada menos do que uma adesão de Portugal à CEE que vai para dez anos ainda estava na forja e cuja notável incidência sobre temas aqui abordados mereceria atenta consideração. Para disto nos convencermos, basta pensar no afluxo à nossa agricultura de ingentes fundos comunitários ou nas reconversões culturais e na liberalização em curso, em boa parte devidas a exigências do jogo europeu, que também já provocou a extinção dos nossos velhos organismos de coordenação económica. Acerca de tudo isto nada este artigo diz 2 ; e a lacuna há-de parecer tanto mais grave quanto é certo que nele se exprimem grandes dúvidas sobre a viabilidade desses processos, carecidos de um forte apoio financeiro, que o Estado Português, então ameaçado de falência, não estava em 1 Ao revê-lo agora, cuidei quase exclusivamente da forma literária e da precisão conceituai. Relativamente ao velho texto, a única novidade importante consiste numa série de notas que estabelecem um confronto dos juízos emitidos por Salazar em 1916 sobre o regime cerealífero (e sobre o seu contexto) com os achados de uma mais recente investigação, devida ao Prof. Jaime Reis. Algumas outras notas, muito poucas, referem-se a pontos particulares cuja «actualização» me pareceu conveniente, mas essas datei-as. 2 Sobre a recente extinção dos organismos coordenadores ver Manuel de Lucena, «A herança de duas revoluções», in Portugal -o Sistema Político e Constitucional, 1974-1987, org. por Mário Baptista Coelho, Lisboa, instituto de Ciências Sociais, 1989, pp. 505-555, sobretudo pp. 542 e segs. 97 Salazar e a intervenção estatal no sector primário desde a nossa adesão à CEE. Permanece, no entanto, largamente impensada, como se o País, adoptando a via do menor esforço, se estivesse pouco a pouco dispondo a trocar a independência pela prosperidade 4 . Lamento não ter agora tempo para desenvolver este tema, mas tratá-lo a preceito seria escrever outro artigo. Caso este o suscite com alguma galhardia, já me darei por satisfeito. Quanto ao amadorismo, a verdade é que dei por mim a escrever para saber, e não do que sabia, sendo essa, até, uma das razões da excessiva extensão do artigo, devida a eu ter preferido expor pormenorizadamente e citar extensamente autores cujo pensamento não estava certo de saber sintetizar em poucas palavras. Também é verdade que, tratando-se quase sempre de obras pouco conhecidas ou fora do mercado, ou às quais não foi prestada, quando apareceram, a devida atenção, o meu excesso de zelo contribuirá para a sua merecida publicidade. Mas esta desculpa é curta, tenho de ver se arranjo melhor. Originariamente, o que agora publico não era, como já disse, um artigo, mas sim o texto introdutório de uma série de cinco monografias dedicadas aos principais organismos de coordenação económica actuantes no sector agro-pecuário 5 , nas quais procuro resumir a história de cada qual desde a respectiva fundação até ao princípio da década de 80. Eu estava nessa altura a estudar a extinção da organização corporativa da lavoura 6 , cuja acção muito dependera desses organismos coordenadores, dos quais quase nada sabia e tinha de passar a saber. Ora, quando a seu respeito procurei informar--me, logo me apercebi de que ainda não tinham sido objecto da atenção dos nossos estudiosos 7 , facto contra o qual muito resmunguei entre dentes por-4 Ainda não houve, por exemplo, nenhum grande debate público sobre a necessidade (ou não) de se assegurarem internamente produções mínimas de géneros de primeira necessidade, nem sobre o problema dos transportes e das vias de comunicação com o exterior. Tudo se passa como se bastasse ter fé em que do estrangeiro nos chegará sempre o que vier a faltar-nos e em que o trânsito de mercadorias (e de energia) através da Espanha nunca será dificultado. 5 A saber, a Federação Nacional dos Produtores de Trigo (FNPT) e, mais tarde, o Instituto dos Cereais (IC, que depois do 25 de Abril deu lugar à EPAC) e as Juntas Nacionais do Vinho (JNV), das Frutas (JNF), dos Produtos Pecuários (JNPP) e do Azeite (JNA), que em 1972 se dissolveu no Instituto do Azeite e Produtos Oleaginosos (IAPO). Para cada uma destas monografias -cujas partes jurídicas assentam em recolhas e análises de legislação e de estatutos levadas a cabo pelo Dr. Rodrigo de Lucena-, Francisco Sarsfield Cabral escreveu um capítulo introdutório sobre a economia do respectivo sector. 6 Fora-me encomendado em 1977, pelo então ministro da Agricultura e Pescas, António Barreto, um Relatório sobre a Extinção dos Grémios da Lavoura e Suas Federações, entregue no Ministério em 1978 e cuja parte geral (vol. i) redigi, cabendo ao Dr. Carlos da Silva Costa os vols. ii (Norte litoral) e iii (Norte interior), ao engenheiro-agrónomo António Correia Fragata o vol. ív (Centro) e às engenheiras-agrónomas Maria Inês Mansinho e Maria Margarida Néri Pereira o vol. v (Alentejo e Algarve). Depois (1979), o mesmo António Barreto, desta vez enquanto director do Centro de Estudos Rurais da Universidade Católica, encomendou-me o aprofundamento desse relatório na parte do Alentejo, do que resultaria um livro de que sou o único responsável, publicado em finais de 1984: Revolução e Instituições: a Extinção dos Grémios da Lavoura Alentejanos (Lisboa, Publicações Europa-América, s. d.). 7 O melhor que então se me deparou foram algumas obras, utilíssimas, mas insuficientes -como, p. ex., o Historial da FNPT (só até 1963) e boas compilações de relatórios e de legislação sectorial, como a da JNV-, publicadas pelos próprios organismos. 99 Manuel de Lucena que me ia dar uma carga de trabalhos. Mas paciência, havia que remediar; e o meu remédio foram as ditas monografias -cuja primeira versão data de 1978-80 8 -, bem como o artigo de âmbito mais geral «Sobre a evolução dos organismos de coordenação económica ligados à lavoura», publicado na Análise Social em 1979 9 . Depois, como a primeira versão das monografias me parecesse -e era-demasiado incipiente, resignei-me, ao longo dos anos seguintes, a procurar melhorá-la; até que, em 1982 ou 1983, o conselho científico do ICS (ou seria ainda o do GIS?) me mandou suspender esse trabalho, para o qual a minha vocação não era nítida. Obedeci lhe, conjunturalmente aliviado, mas já tinha entretanto escrito, para introduzir a obra adiada, o texto 10 que só agora se publica 11 . Ainda não desisti de completar as citadas monografias, levando-as a cobrir toda a trajectória dos ditos organismos, que no final da década de 80 foram, como disse, extintos. Não sei, porém, quando tal acontecerá nem isso é o que mais interessa aqui. Aqui, o que mais interessa é salientar que, contrariado ao começá-las, fui aprendendo bastante com elas 12 e fiquei muito grato aos especialistas que me deviam ter precedido (é sobretudo de estranhar que nenhum marxista evoluído o tivesse feito) por me deixarem tanto espaço virgem onde pude caminhar pelo meu pé. É verdade que a viagem não fez de mim um entendido, longe disso: cheguei ao fim, ou quase, sem bossa de historiador nem de sociólogo da economia e da política rurais ou agrícolas; e bem precisaria da ajuda de oficiais destes ofícios para refinar a sistematização e a interpretação dos materiais carreados. Mas o processo de conhecimento que adoptei, algo autodidáctico e certamente imperfeito, também teve as suas vantagens: Por um lado (o do investimento), permitiu que ao intervencionismo e ao proteccionismo salazaristas, dos quais a coordenação económica foi instrumento maior, eu fizesse uma abordagem por assim dizer «ingénua» ou, pelo menos, livre de certos preconceitos correntes, oriundos da economia política e da sociologia das classes e dos conflitos sociais; preconceitos esses que às vezes talvez no fundo o não sejam -e sim fecundos conceitos-, mas que tais inevitavelmente se tornam quando manejados, quais expeditas 8 Podendo ser consultada no ICS (texto dactilografado) por quem esteja interessado. ), quase todos meus colegas no ICS. 11 Em Março de 1985 apresentei à Conferência Internacional sobre a Integração de Portugal na CEE, promovida pela APRI (Associação Portuguesa de Relações Internacionais), uma comunicação nele baseada. 12 Apreendi, por exemplo, a essencial ambiguidade do regime corporativo no terreno económico, ao ver os organismos de coordenação sustentarem longamente inúmeros produtores inviáveis, enquanto, por outro lado, apoiavam grandes iniciativas privadas, fomentavam um cooperativismo por vezes tendencialmente basista e socializante e manifestavam forte tendência para o capitalismo de Estado. Ambiguidade esta esplendorosamente confirmada no decurso do processo de extinção da organização corporativa posterior ao 25 de Abril... (sobre tudo isto 100 cf. artigos adiante mencionados nas notas 13 e 179). Salazar e a intervenção estatal no sector primário gazuas, por quem não possui a bagagem necessária para os assimilar e aplicar convenientemente. É o que sucede com a maioria dos devotos, e outro não seria o meu caso se os imitasse. Por outro lado (o do produto), propiciou a redacção de um ensaio que realmente ensaia, no sentido em que ensaiar é tentar; e que, começando pelo princípio, em vez de logo tirar inamovíveis conclusões, procede depois com vagar e minúcia, como quem se não sente suficientemente seguro para alargar a passada; de modo a informar razoavelmente os leitores menos familiarizados com o tema e a propiciar uma fundamentada discussão das interpretações do autor, as quais, de resto, não passam de hipóteses, a todos quantos se armem da paciência necessária para a leitura que lhes propõe. Pelo menos assim o espero, e também que, tanto aos mais europeístas como aos mais nacionalistas, o que se segue dê que pensar. 13 Cf. M. de Lucena, «Sobre a evolução dos organismos de coordenação económica ligados à lavoura», m Análise Social, n. os 56-57-58, 1978. 101 Manuel de Lucena completá-lo com uma referência minimamente pormenorizada a outra ordem de ideias, menos gerais -e mais salazaristas-, relativas aos objectivos concretos da coordenação, bem como ao exacto sentido do intervencionismo estatal de que foram instrumento privilegiado. Para tal, talvez não haja nada melhor do que começar por expor fielmente a complexa postura que Salazar perante o assunto assumiu num escrito de juventude (Questão Cerealífera-o Trigo) escrito em 1915, publicado em 1916 e cujo tema é bem mais amplo do que o apontado no título. Nele se pode ler uma análise científica assaz precisa, objectiva e em vários passos ainda infelizmente actual dessa «questão», concebida como nó górdio de toda a nossa política agrícola; análise essa a partir da qual o autor define uma atitude reformadora na qual se divisam, in nuce, diversas hipóteses de intervenção, bem como de relativa desintervenção estatal, no domínio cerealífero, e não só. E a mais óbvia não seria por certo a inaugurada pela famosa Campanha do Trigo, em 1929 e seguintes... Pelo contrário, pode até suspeitar-se que Salazar foi então levado a rever substancialmente, e porventura a atraiçoar, a sua inspiração primeira. Com efeito, várias passagens do livro podem sem dificuldade servir para uma cerrada crítica à Campanha do Trigo, à tonalidade autárcica que assumiu, ao proteccionismo que exasperou, ao agravamento da histórica distorção cultural do nosso agros que foi sua consequência... Eis um dos motivos de interesse na leitura, ao qual provavelmente se ficou devendo a retirada da obra do mercado, que se deu enquanto o autor se firmava no poder... Mas é outrossim curioso que, muitos anos mais tarde, o regime a não tenha redescoberto e reverenciado quando, pela mão de um ministro (Correia de Oliveira) sem dúvida muito próximo do mestre, pareceu retomar a vontade de reconversão e reforma que Salazar manifestara cerca de quarenta anos antes. A partir de 1965, o Ministério da Economia emanou um corpo de diplomas e directrizes assaz coerente (outra questão é a da sua eficácia prática) seguindo quase ponto por ponto as propostas salazaristas da Questão Cerealífera, mas sem citar este livro, que eu saiba, uma única vez. Ora mal se concebe que a omissão não fosse do agrado de Salazar... Dir-se-á, portanto, que a sua lição coimbrã foi nessa altura tão discretamente reabilitada quão secamente tinha sido afastada em 1929, sem explicações. A verdade, porém, talvez seja mais fina, como adiante se verá. O que fica dito bastaria para nos aguçar o apetite. Mas há mais, sendo de referir desde já outro passo, que estabelece a passagem do plano trigueiro para o da agricultura no seu todo, metida na economia geral. Pois Salazar, embora privilegiando o trigo -à tout seigneur tout honneur-, encara a questão cerealífera como fulcro do problema agrícola nacional, em busca daquilo a que chama a «fórmula económica da agricultura portuguesa». Fórmula essa que julga ter achado e que implicava a necessidade não só de uma grande reconversão cultural, mas também de uma profunda, se bem que gradual, reforma fundiária; e fórmula essa, note-se, que, por ser de economia política, nunca corresponderia a um optimum mirífico, tecnocraticamente 102 deduzido à revelia das condições sociais, culturais e morais do País. Com 14 Outras vezes subtitularei com expressões suas. Aspas darão, em ambos os casos, o seu a seu dono. 15 Cf. O. Salazar, Questão Cerealífera -O Trigo, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1916, p. 3. Até nova indicação, todas as citações serão extraídas das «Duas palavras de introdução», op. cit., pp. 5-11. 103 Manuel de Lucena cação da colheita a um preço certo», só se permitindo a aquisição no estrangeiro, pelas fábricas de moagem 16 , das quantidades necessárias ao consumo que a lavoura nacional não conseguisse produzir. Adiante caberá uma melhor descrição deste regime, mas diga-se desde já que o trigo estrangeiro (exótico) era em geral muito mais barato do que o português. Daí que o proteccionismo tendesse a manter caro o pão 17 , que nessa altura não era subsidiado. E daí também que os industriais de moagem gostassem de importar, já que a pauta era calculada de modo que a operação lhes fosse bastante lucrativa, sobretudo nos anos seguintes aos de colheita escassa, no decurso dos quais se importava muito... Para os defensores das moagens, estas importações seriam condição sine qua non da sobrevivência delas. Os adversários, pelo contrário, escandalizavam-se ou fingiam escandalizar-se com a portentosa fortuna dos grandes moageiros 18 . Mas adiante. 16 De acordo com a mais recente abordagem científica -de Jaime Reis (ver «A lei da fome: as origens do proteccionismo cerealífero, 1889-1914», in Análise Social, n.° 60, 1979, pp. 745- 793)-, esta foi uma das principais concessões feitas à moagem pela legislação proteccionista logo em 1889-90 (outra foi a de só muito excepcionalmente se permitir a importação de farinha), o que, «mau grado a oposição da Associação Comercial de Lisboa [...], eliminava deste rendoso negócio as casas importadoras que antes dominavam o ramo» (cf. art. cit. in op. cit., p. 765). A este respeito, J. Reis refere, na mesma página, que a «moagem ainda não era nessa altura o grande poder político e económico que viria mais tarde a ser. Em 1889 havia em todo o país apenas doze fábricas modernas, ao passo que elas seriam já 107 em 1898 [...]» O facto de nem por isso a moagem ter deixado de ser contemplada -em detrimento não só das sobreditas casas comerciais, mas também «da tradicional indústria constituída por moinhos e azenhas»-teve certamente razões que excederam a sua (então restrita) capacidade de influenciar os governantes e que, podendo ser pressentidas, interessaria averiguar em pormenor. 17 É de notar que, em 1889, o regime proteccionista -assegurando embora a compra do trigo aos produtores por preços bastante superiores aos que o mercado até então registara (cf. J. Reis, art. cit. in op. cit., quadro n.° 2, p. 752)-não veio provocar a subida do preço do pão. Este é que já era caro, como o nosso trigo. Pelo contrário, «tanto as leis proteccionistas quanto os seus proponentes deram abundantemente a conhecer que, acontecesse o que acontecesse, nunca seria permitido o aumento do pão de trigo». E, em 1899 e seguintes, a lei de Elvino de Brito e a subsequente legislação regulamentadora «reuniram disposições terminantes para assegurar a não subida do preço do pão comum, por oposição ao pão mais fino, chamado de luxo» (id., ibid., pp. 765 e 773). Mas é claro que, ao garantirem os rendimentos de uma lavoura produzindo com custos muito superiores aos do mercado internacional, não propiciavam o embaratecimento do pão, que continuou a pesar excessivamente na economia das famílias portuguesas. Embora não tivesse subido de 1890 a 1910 (ao contrário de outros géneros, como o bacalhau, a carne, o azeite...), «durante os primeiros anos do século xx Portugal comia de longe o pão mais caro da Europa» (id. , ibid., p. 591) . Sem o proteccionismo, ter-se-ia provavelmente gasto, no País, muito menos dinheiro em trigo. E, muito embora daí se não possa, sem mais, concluir que, em regime liberal, «essa economia teria necessariamente passado para o consumidor sob a forma de pão mais barato, e não para os bolsos dos importadores, dos moageiros e dos padeiros» (id., ibid., mesma página), bem se entende que a lei de 1899 tenha sido chamada «da fome». 18 A Jaime Reis «parece provável que estes lucros [da moagem] não fossem elevados e eram certamente menores do que a enorme 'fatia' que era frequentemente denunciada pelos representantes dos interesses agrícolas» (cf. J. Reis, art. cit. in op. cit., p. 753), funcionando as importações como compensação pela contenção dos preços da farinha que lhes era imposta a fim de não encarecer o pão (ver nota anterior). Salazar e a intervenção estatal no sector primário O regime proteccionista adoptado em finais do século xix levou à expansão da cultura do trigo, na tentativa de «cobrir o déficit cerealífero, abastecer de pão este país com uns milhares de hectares incultos, mas em geral pobres e não muito apropriados para a cultura do trigo... De modo que o nosso Portugal se encontra cultivando o trigo -base absorvente da exploração agrícola sobretudo no Sul-quando melhor conviriam outras culturas às condições do meio». E Salazar acrescenta tratar-se «de um desvio cultural histórico, que há que relacionar com o modo de vida, o atraso económico em todas as suas manifestações, a distribuição da população, a organização da propriedade, a forma de cultura, certos vícios fundamentais da constituição social do todo, ancestrais, dificilmente extirpáveis». Nesta passagem, o futuro presidente do Conselho mostra-se plenamente consciente do que estava em causa, não parecendo que lhes escape nenhum defeito essencial. Logo adiante refere-se à «propriedade latifundiária alentejana, de dono ausente e desinteressado, a não ser na renda contratada a longo prazo», e aos rendeiros, «a quem o crédito receoso não favorece em condições aceitáveis [...]». E é desta consciência que procede o seu reformismo, prudente, mas profundo, que aqui me proponho expor. Antes de o contemplar, porém, resumirei as análises da economia trigueira do regime cerealífero empreendidas por Salazar 19 . d) «O TRIGO PRODUZIDO» De acordo com Salazar, a área cultivada de trigo seria, anualmente, de 275 000 a 300 000 hectares. Porém, dado «o processo cultural geralmente seguido [...] de largos pousios», andaria adstrito a esta cultura cerca de 1 milhão de hectares. Era muito, mas ainda podia ser mais se se quisesse, com tantas terras incultas aproveitáveis à disposição, «por boa parte das quais se poderia alargar o cultivo do trigo». Sob reserva da proverbial incerteza estatística, o nosso autor julga inclusivamente saber que, nos últimos anos, cerca de 1915, a área cultivada pouco aumentara 20 . De acordo com dados que fornece, o fenómeno seria aliás europeu. Com a só diferença de que, em quase todos os outros países, a produção tinha não obstante aumentado, graças a um progresso técnico (mecanização, adubação, sementes seleccio-19 Cf. cap. i, «O trigo na produção e no consumo», in Salazar, op. cit., pp. 13-37, de onde provêm as citações das três alíneas seguintes, que correspondem a três secções suas. 20 Não contrariando esta asserção, Jaime Reis salienta que «a extensão da fronteira agrícola foi característica duma grande parte do século xix no Alentejo [...] com remoção do mato denso que cobria uma grande parte dos campos a fim de dar lugar [a] enormes áreas de montados, de sobreiros e azinheiros [...]». Acrescentando que, embora muito se continuasse a vituperar o latifúndio qual «obstáculo ao desaparecimento dos incultos no Sul do País, com o proteccionismo dos cereais se desenvolveu mais uma grande arrancada no arroteamento da charneca alentejana, que prosseguiria com intensidade variável durante as décadas seguintes até à erradicação finai já nos anos 30 deste século». (Cf. J. Reis, art. cit. in op. cit., p. 779, sublinhados meus.) 105 Manuel de Lucena nadas...) que elevara substancialmente a produção por hectare, ao passo que «em Portugal, onde a média é inferiosíssima, pouco se fez nesse sentido, ou, se progressos houve, escapam à verificação» 21 . A este respeito, Salazar acrescenta que «a estatística oficial de 1910-1911 atribuía às nossas terras a produção quase miserável de 8,4 hectolitros por hectare». Com os outros países a comparação era «triste e talvez mesmo vergonhosa», raros sendo os que não produziam «duas, três, quatro e mesmo cinco vezes mais [...]». Até com a Turquia ficávamos a perder. O trigo nacional era insuficiente para o consumo interno, esgotando-se em seis, sete, oito meses. E, no entanto, «para se chegar a produzir trigo que bastasse [...] já seria de mais um acréscimo de 50% da produção»; não era preciso alargar custosamente as áreas cultivadas. Bastaria levar cada hectare de terreno a produzir um pouco mais. Seria impossível igualarmos a Dinamarca, a Bélgica, a Holanda. Mas bem poderíamos chegar-nos à Bulgária ou à Itália, que andavam com 10,4 e 9,7 hectolitros por hectare respectivamente. Por outro lado, o exame atento da nossa cultura trigueira convenceu Salazar de que os distritos que mais trigo produziam se contavam quase todos entre os menos próprios para essa cultura. Mostra-nos, a propósito, um quadro segundo o qual a produção média por hectare, em 1911, foi de 5,7 quintais em Évora, 6,6 em Beja e 7,1 em Portalegre, contra os 18,3 de Aveiro, os 13 do Porto... Voltando ao Sul, Lisboa vinha num lugar intermédio, com 10,7 quintais por hectare -perto de Santarém, com 9,2-, e Castelo Branco no último, com 2,6. É verdade que Salazar também cita outros cálculos -do Comércio do Porto-algo diferentes dos seus, mas fá-lo em nota, não lhes atribuindo grande importância. E insiste na ideia de que «o que sobremodo importa é a pequena média por hectare nos quatro ou cinco distritos grandes produtores, em que qualquer progresso [...] logo traria sensível aumento da produção total». Com efeito, Portalegre, Évora e Beja «colheram naquele ano mais de metade da produção total, numa área que por si excederia em muito a soma das áreas que em todos os outros haviam sido semeadas de trigo». Sempre em 1911, cinco distritos (esses três, mais Lisboa e Santarém) terão produzido «mais de dois terços de toda a colheita». 21 Caindo aparentemente em contradição, Salazar dir-nos-á adiante [cf. 3, b), infra] que, além de se ter cultivado mais trigo, «certamente se cultivou melhor, o trigo produzia mais por hectare [...]». Jaime Reis, pelo seu lado (art. cit. in op. cit., pp. 781-785), afirma que «a produtividade aumentou no Sul do País» sob o regime proteccionista. E, concordando embora em que «é impossível medi-la com exactidão», sustenta que há «provas circunstanciais sugestivas» de que a expansão da cultura trigueira se traduziu não só «num aumento substancial do emprego em termos absolutos», como também «num aumento da produtividade da força de trabalho», a qual terá ficado designadamente a dever-se ao «progresso espectacular» registado na utilização de adubos químicos. No entanto, as conclusões aproximativas a que chega em matéria de rendimentos médios por hectare de trigo nos distritos alentejanos em 1910 não parecem de molde a contrariar essencialmente o pessimismo de Salazar quanto aos progressos registados na fase em apreço, provavelmente menores do que os havidos em países dos quais devería-106 mos querer aproximar-nos. Salazar e a intervenção estatal no sector primário Com tudo isto, a nossa produção de trigo, extremamente variável de ano para ano, era baixa, «ficando quase sempre muito aquém das necessidades do País» 22 . b) «O TRIGO IMPORTADO» Portugal tinha, pois, como ainda hoje tem, de importar vultosas e valiosas quantidades de trigo, no prolongamento, aliás, de uma tradição constituída desde os tempos de D. Afonso III, só interrompida entre 1833 e 1855, altura em que «pudemos ainda exportar uns milhares de hectolitros». Mas isto não se repetiria. A partir de 1855, se a produção interna aumentou, a população também cresceu; e «a desproporção entre o trigo produzido e o necessário ao consumo pôde durante muito tempo agravar-se e tornar-se cada vez mais pesado o tributo a pagar, por este motivo, aos países estrangeiros. De 1856-57 a 1862-63, a média anual da importação de trigo, em grão e farinhas, andou por 31 000 toneladas, mas entre 1865 e 1888 já tinha dobrado [...]. No decénio seguinte (1890-99) importaram-se [...] em cada ano 134 000 toneladas de cereais panificáveis», dos quais 115 milhões representariam a parte do trigo. «E desde 1899, ano em que foi reforçada a protecção legal à agricultura portuguesa, não nos [correram] as coisas de muito diverso modo» 23 , ascendendo a média anual do déficit trigueiro às 132 000 toneladas, «para ónus do nosso orçamento cambial». É um terço de todo o consumo de trigo -diz Salazar-que o estrangeiro nos fornece anualmente a peso de ouro. Mas isto beneficia o erário público, nota ele com ironia, já que os direitos de importação arrecadados representam «uma linda soma que o Estado cobrou para proteger a lavoura, mas felizmente não gastou na protecção» 24 . Para concluir, filosoficamente, que «ao menos não importamos farinha» (desde 1902), chegando até a exportar alguma: pouca e quase só para as colónias -pudera! -, dados os preços do nosso trigo, sempre mais altos que os do mercado internacional. Estamos chegando a outro ponto: depois dos custos da farinha, o preço do pão. c) «O TRIGO CONSUMIDO» Nas condições acima referidas, não pode estranhar-se que o pão saísse caro. Na verdade, consumia-se pouco, reconhece o nosso autor: «[...] e não [...] 22 A qualidade do produto também era causa de preocupações, por não haver «todo o cuidado na selecção e aperfeiçoamento das sementes». Contudo, Salazar achava os nossos trigos «geralmente bons». 23 Até 1913, último ano referido na estatística citada por Salazar. 24 Jaime Reis concorda com isto ao dizer-nos que «a razão de ser» das tarifas alfandegárias sobre o trigo «era sobretudo fornecer receitas ao Estado», em contraste com o que se passava em «outros países europeus, onde constituíam o fulcro do mecanismo protector» (cf. J. Reis, art. cit. in op. cit., p. 747). 107
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