Aborto: análise crítica do PL 5069/2013

Carmen Hein De Campos, Rovena Furtado Amorim, Julia Roberta Teixeira Loyola
2016 Sistema Penal & Violência  
Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja corretamente citada. Resumo O artigo analisa o Projeto de Lei 5069/2013 em tramitação no Congresso Nacional que pretende criminalizar diversas condutas para impedir o abortamento e de profissionais da áreas da saúde, limitar os direitos à saúde, à informação e à medicação em caso de
more » ... ia sexual e impedir políticas públicas de redução de danos. Nesse sentido, o projeto é inconstitucional e paradigmático da violência institucional promovida pelo Congresso Nacional contra a dignidade e a vida das mulheres, revelando um profundo déficit dogmático e criminológico e uma política criminal mortífera contra as mulheres. Palavras-chaves: aborto; direitos sexuais e reprodutivos; direitos humanos. Abstract The article analyzes the Bill 5069/2013 that criminalizes professionals in the health areas, reduces abortion possibilities in cases of rape, limits the rights to health, information and medication in case of sexual violence and prevents public policies of harm reduction. In this sense, the project is unconstitutional and an exemple of paradigmatic institutional violence promoted by the National Congress against the dignity and lives of women and reveals a deep dogmatic and criminological deficit and a deadly criminal policy against women. 67 Introdução As lutas por reconhecimento têm colocado o Direito como lugar paradigmático na contemporaneidade. É no reconhecimento cultural das diferenças de gênero, raça/etnia, sexualidade, por um lado, e na necessidade de distribuição dos bens e da riqueza, por outro, que o tema da justiça de gênero para as mulheres ganha revelo. (FRASER, 2000 (FRASER, , 2006(FRASER, , 2010. Em muitos países da América Latina, os tribunais constitucionais têm atuado tanto para reconhecer o direito à saúde reprodutiva das mulheres quanto para impedir uma desigual distribuição do acesso à saúde ou à justiça. Por exemplo, no Brasil 1 e na Colômbia 2 , as cortes constitucionais ampliaram os permissivos legais ao abortamento, e no Chile 3 , o Tribunal Constitucional afirmou a igualdade sexual no âmbito do sistema de saúde privada ao impedir a cobrança de taxas mais elevadas para as mulheres. Nesse sentido, o direito constitucional é um campo afirmativo dos direitos, isto é, o campo privilegiado do reconhecimento. Por outro lado, o direito penal tem sido utilizado como um caminho para a busca do reconhecimento da violência de gênero, como por exemplo, nos casos de violência doméstica e familiar, do feminicídio, do racismo e da homofobia. No entanto, no que concerne aos direitos sexuais e reprodutivos, o direito penal e o sistema de justiça criminal (polícia, ministério público, poder judiciário, prisões, manicômios) não apenas não reconhecem como têm sido violadores dos direitos das mulheres. O direito penal é a dimensão simbólica da força e violência desse controle formal. É a instância racionalizadora do sistema de justiça criminal altamente desigual e seletivo que reproduz a desigualdade social e a violência de gênero. Além disso, o direito penal é um mecanismo de controle fundamentalmente da conduta masculina e só residualmente feminina (ANDRADE, 2005) , como se pode observar na clientela da prisões em nosso país, composta majoritariamente por homens pobres, negros, pardos, e pouco escolarizados. Esse controle altamente seletivo e estigmatizante age sobre as condutas masculinas dos considerados 'descartáveis' ou 'improdutivos' (BAUMAN, 2009; WACQUANT, 2009) selecionando aquelas a serem definidas como crime (criminalização primária), distribuindo a vitimização pela persecução criminal da polícia, ministério público e judiciário (criminalização secundária) e estigmatizando através da prisão (criminalização terciária). Mas o controle formal atua em conjunto com o sistema de controle social informal sobre as mulheres como um continuum que se inicia na família e que se alastra por todas as instituições sociais (escola, universidade, religião, etc.). Entretanto, são pouquíssimas as condutas femininas definidas como crime (ANDRADE, 2005) . Não obstante, seu impacto não poderia ser mais danoso, pois o objetivo é controlar a sexualidade e a reprodução, criminalizando a mulher como autora de crimes como aborto, infanticídio, abandono de incapaz. Ou seja, o direito penal não pretende controlar toda e qualquer conduta feminina, mas especificamente àquelas que reduzem a autonomia sexual e reprodutiva e conformam uma moralidade às mulheres. Assim, o controle formal interage com o controle social informal, reforçando a dicotomia público e privado e os papeis de gênero. Generaliza as condutas criminalizáveis masculinas e especifica as condutas criminalizáveis femininas. Nesse sentido, a residualidade é compensada pela concentração de sua atuação. Além de concentrada, a persecução criminal é perversamente seletiva. No caso do aborto, por exemplo, atinge principalmente as mulheres pobres e pouco escolarizadas que não podem arcar com os custos de um abortamento seguro. No entanto, o aborto é um evento comum na vida das mulheres brasileiras e ao completar 40 anos mais de uma em cada cinco mulheres já terá realizado um aborto (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 964). 1 Decisão do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental -ADPF 54/12 que entendeu que a interrupção da gestação de feto anencéfalo não é crime. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2015. 2 Na decisão T 209-2008, o Tribunal Constitucional da Colômbia entendeu que a proibição total do abortamento no país violava os direitos humanos das mulheres e os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos das mulheres ratificados pelo país.
doi:10.15448/2177-6784.2016.1.23928 fatcat:dzy46gene5borgcxr6htleflgm