FRANCISCO CAMPOS E O CINISMO CONSTITUCIONAL
FRANCISCO CAMPOS AND THE CONSTITUTIONAL CYNICISM
FRANCISCO PINTO
2019
Revista Jurídica da Ufersa
RESUMO O presente artigo tem como objetivo analisar a recepção, nos meios jurídicos, das ideias propostas por Francisco Campos para legitimar o governo autoritário de Getúlio Vargas. Para a análise das propostas de Campos, utilizou-se o cinismo como uma categoria analítica apta a descortinar o uso estratégico do direito para fins políticos. Argumentase que, em um primeiro momento, o jurista utilizouse de estratégias discursivas baseadas em um discurso mítico, reveladoras de um modo cínico de
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... ceber a legitimação do poder. Defende-se que suas propostas não obtiveram sucesso entre os juristas em razão da aceitação de um discurso legitimado, não na força do mito político, mas em fundamentos cientificistas de cunho histórico e sociológico. ABSTRACT This article aims to analyze the reception, in legal circles, of the ideas proposed by Francisco Campos to legitimize the authoritarian government of Getúlio Vargas. For the analysis of Campos's proposals, cynicism was used as an analytical category capable of revealing the strategic use of law for political purposes. It is argued that, at first, the jurist used discursive strategies based on a mythical discourse revealing a cynical way of conceiving the legitimation of power. It is argued that its proposals were not successful among jurists because of the acceptance of a legitimized discourse based not on the force of political myth but on scientific and sociological foundations of a historical and sociological. SUMÁRIO INTRODUÇÃO; 1 CONSTITUIÇÃO DE 1937: A "CONSUBSTANCIAÇÃO" DO DISCURSO AUTORITÁRIO; 1.1 Sucesso institucional: fracasso ideológico; 2 CONSIDERAÇÕES FINAIS. ◼ INTRODUÇÃO Em seu último curso no Collège de France, sob o título "A coragem da verdade -O Governo de Si e dos Outros II", Foucault discorre sobre o conceito de parresía (a fala franca). Seu objetivo era estabelecer um quadro geral em torno do tema da "verdadeira vida, da estilística da existência, da busca de uma existência bela na forma da verdade e da prática do dizer-a-verdade" 1 . Por meio dessa busca, encontra, na filosofia cínica, uma das expressões de um modelo de vida em que o "dizer-a-verdade" era exercido com tamanha coragem e ousadia a ponto de se transformar em "intolerável insolência" 2 . A forma cínica de "dizer-a-verdade", não apenas como discurso, mas como prática, era inadmissível e levantava a resistência de quem a presenciava ou com ela era contestada. Como uma forma de parresía, ela era incômoda e perturbadora em razão de seu excesso. Foi especificamente essa característica do cinismo que chamou a atenção de Foucault 3 . E é esse excesso, juntamente com a repulsa que o cinismo provoca, que destacamos nas propostas político-constitucionais de Francisco Campos. A ele também se ligam outras características cínicas: a impiedade e a instrumentalidade de seu modo de viver. O cínico é também acusado de ser um ímpio. Ele não crê nos deuses e não pratica os mistérios, pois o cínico, homem da parresía, não pode se comprometer a se calar 4 . É o homem incrédulo ou cético em relação às práticas religiosas, entendidas como falsas crenças ou falsas incredulidades 5 . A instrumentalidade é própria ao modo de viver do cínico. Ela desempenha o papel de condição de "dizer-a-verdade". O cínico não está ligado a ninguém, nem à família, nem ao 1 Foucault se refere ao cinismo em sua forma antiga, nos textos do período helenístico e romano de autores como Diógenes Laércio, Dion Crisóstomo, Epicteto, em escritos satíricos ou críticos escritos por Luciano no fim do século II e na polêmica do imperador Juliano com os filósofos cínicos. O que lhe interessa especificamente é a ligação da filosofia cínica entre um modo de viver e um modo de dizer-a-verdade. "O cínico é o homem do cajado, é o homem da mochila, é o homem do manto, é o homem das sandálias ou dos pés descalços, é o homem da barba hirsuta, é o homem sujo. É também o homem errante, o homem que não tem inserção, não tem casa nem família nem lar nem pátria [...], é o homem da mendicidade também" (FOUCAULT, Michel. A coragem de verdade: o governo de si e dos outros II: curso no Collège de France (1983)(1984). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 144). Essa imagem física degradada, juntamente com a insolência do homem cínico em dizer-a-verdade sem qualquer amarra, fez com que fosse visto com desprezo -comumente relacionado à imagem de um em cão (kunikos) -em razão de suas atitudes e palavras consideradas excessivas. 2 Ibid., p. 144. 3 SARDINHA, Diogo. A filosofia e os seus cães: dos cínicos à canalha. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 68-68, jan./jun. 2011. 4 FOUCAULT, Michel, op. cit., p. 147. 5 Ibid., p. 151. Francisco Campos e o cinismo constitucional REJUR -Revista Jurídica da UFERSA Mossoró, v. 2, n. 4, jul./dez. 2018, p. 39-66 ISSN 2526-9488 41 lar, nem à pátria. Trata-se de uma vida desvinculada de tudo e de todos, o que lhe confere a liberdade para se manifestar sobre o que considera verdadeiro 6 . Excesso, incredulidade e instrumentalidade são caracteres do cinismo que serão utilizados por Francisco Campos em seu manejo político do direito. Campos, no entanto, é um cínico moderno. Diferente do cínico da Antiguidade -desvinculado de tudo e de todos -, exercia desvinculações periódicas em suas adaptações às mudanças políticas que o país vivia. De defensor do arranjo liberal na juventude, a antiliberal autoritário nos anos 1930-1940, passando por democrata ao fim do Estado Novo e, finalmente, fazendo um retorno autoritário em 1964, Campos é essa figura sem vínculos ideológicos solidificados, um "jurista adaptável" 7 aos governos e regimes da ocasião 8 . Representativo do cinismo moderno, o discurso de Francisco Campos caracterizavase pela superação das crenças, mais especificamente, por suplantar o discurso ideológico. Diferente da figura existente na filosofia cínica, que enunciava seu discurso fora do poder, Campos se expressava inserido nos círculos de mando, utilizando-se de uma estratégia discursiva com vistas não apenas a justificar a tomada do poder, mas, fundamentalmente, para a sua manutenção. Para isso, foi necessário manejar as ideologias existentes a partir do que Peter Sloterdijk denominou de "razão cínica", ou seja, por meio de um "estado de consciência que se segue às ideologias ingênuas e ao esclarecimento dessas ideologias" 9 . Trata-se de um "olhar de fora", que se constitui a partir da superação de qualquer perspectiva ideológica e, por isso mesmo, capaz de manejar determinados movimentos de
doi:10.21708/issn2526-9488.v2.n4.p39-66.2018
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