Entrevista com Jean-François Braunstein

Tiago Santos Almeida, Marcos Camolezi
2016 Intelligere  
Recebido em /Aprovado em : entrevista selecionada. Como citar este artigo: Almeida, Tiago Santos e Camolezi, Marcos. "Entrevista com Jean-François Braunstein". Intelligere, Revista de História Intelectual, São Paulo, v. 2, n. 1 [2], p. 156-171. 2016. Disponível em . Acesso em dd/mm/aaaa. * Os dois entrevistadores agradecem à FAPESP -Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pela concessão das bolsas que permitiram que realizassem, entre 2014 e 2015, estágios de pesquisa sob a
more » ... ão do professor Jean-François Braunstein junto ao Centre de Philosophie Contemporaine da Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. 157 Tiago Santos Almeida e Marcos Camolezi: Filósofo de formação, como o senhor chegou à história da medicina? Jean-François Braunstein: Comecei como historiador da filosofia puro e simples, se assim posso dizer. Mas isso fazia parte de um mundo circunscrito: era o mundo da história do materialismo. Eu trabalhava com alguém que fazia parte desse espaço [CHSPM, Centre d'histoire des systèmes de pensée moderne], Olivier Bloch, e pesquisava justamente sobre a história do materialismo. Nessa época, ocorreu-me que o principal autor que representava o materialismo na França era Broussais, que criticava tanto a ontologia filosófica quanto a ontologia médica 1 . Assim, comecei com trabalhos sobre a história do materialismo, porém muito rapidamente notei que não tinha me deparado com Broussais por acaso. De fato, é um autor completamente central em O normal e o patológico, de Georges Canguilhem, e no Nascimento da clínica, de Michel Foucault. Ele permitia melhor compreender as teses de Canguilhem e de Foucault, e eventualmente completá-las, na medida em que o sucesso das teses de Broussais e sua própria originalidade também provinham de seu lado filosófico. Quando Canguilhem, Foucault ou Erwin Ackerknecht, os historiadores da medicina clássica, falam da Escola médica de Paris, eles falam muito pouco ou relativamente pouco da filosofia dessa escola médica. Ora, pareceu-me que havia um interesse propriamente filosófico na obra de Broussais. Foi assim que me interessei, em seguida, pela história da medicina, pela história da psiquiatria, e me voltei para as obras de Canguilhem, Foucault, Bachelard etc. Por outro lado, eu diria que havia também uma tradição na universidade francesa nessa época que ainda estava no rastro de Canguilhem. Penso, por exemplo, em alguém como François Dagognet, um personagem bem fascinante por sua curiosidade universal, pelos campos que ele abria, mas que também era um personagem bem complicado, com quem eu de fato não trabalhei, mas com quem cruzei muitas vezes. Eis de modo geral o ponto de partida: é a história do materialismo -mas, ao mesmo tempo, a história da filosofia é entediante. "É preciso fazer alguma coisa diferente", eu disse a mim mesmo, me servindo da fórmula canguilhemiana "toda matéria estrangeira é boa" 2 . Logo, foi a história das ciências que me interessou para tentar refletir enquanto filósofo sobre uma matéria estrangeira. T.S.A. e M.C.: E como o senhor chegou a Auguste Comte? Jean-François Braunstein: Porque eu gosto dos loucos, talvez? E porque eu gosto de personagens muito paradoxais... Eu o conhecia como todos, como um historiador das ciências clássico, mas rapidamente me dei conta de que havia uma parte da obra de Auguste Comte que era inteiramente ignorada, inclusive por Canguilhem e por outros. Era o aspecto médico, a medicina de Auguste Comte 3 . Isso colocou-me em seguida no caminho da segunda filosofia de Comte, que é efetivamente religiosa, sintética, como ele diz, subjetiva 4 . Reli todos os trabalhos de Comte que ninguém mais lia há muito 1 Ver J.-F Braunstein, Broussais et le matérialisme. Médecine et philosophie au XIXe siècle (Paris: Méridiens-Klincksieck, 1986). 2 Trata-se de uma das frases mais emblemáticas de Georges Canguilhem, Le normal et le pathologique. (Paris : Puf, 1966), 7: "A filosofia é uma reflexão para a qual toda matéria estrangeira é boa e, diríamos de bom grado, para a qual toda boa matéria deve ser estrangeira." 3 J.-F Braunstein, La philosophie de la médecine d'Auguste Comte. Vierge Mère, vaches folles et morts vivants. Collection Science, histoire et société (Paris: Puf, 2009), 256. Cf. também J.-F Braunstein, "Auguste Comte et la psychiatrie," Les cahiers du Centre Georges Canguilhem, 2 (2008/1): 259-282. 4 J.-F Braunstein, "La religion des morts-vivants. Le culte des morts chez Auguste Comte," Revue des sciences philosophiques et théologiques, [vol.] 87, (2003/1): 59-73.
doi:10.11606/issn.2447-9020.intelligere.2016.114452 fatcat:4uhvkv6feje65gjinok6xgdsz4