A IMAGEM QUE FALTA
Vinicius Esperança
2016
Brasiliana: Journal for Brazilian Studies
A Imagem que Falta Vinicius Esperança O objetivo deste artigo é analisar diferentes narrativas e tentar reconstruir a partir de diferentes vozes a grande operação conduzida por instituições e agentes do estado, que culminou na ocupação militar do Complexo do Alemão. Não encontrei todas as vozes que seriam necessárias para a construção da imagem que gostaria de (re)construir. Quando escrevo isto, entretanto, percebo que poderia ter partido da falsa esperança de acreditar que aquele evento
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... poderia ser reconstituído a partir de pedaços de memórias que, juntas, dariam luz àqueles dias passados. Como no ato de construir um mosaico, diferentes pedaços formariam, de acordo com o gosto do artista, a imagem que escolhera de antemão. Contudo, muito cedo, pude perceber que se empreendesse tal projeto estaria determinantemente condenado ao fracasso e ao falseamento daquilo que me propus a fazer. As muitas dificuldades na construção deste texto poderiam ter produzido tanto a desistência em sua feitura quanto a talvez desonesta opção por construir a imagem (literária) de um evento que nada mais seria que o reflexo ideológico da pessoa do etnógrafo. Não incorro na ingenuidade, no entanto, de tentar esconder que a imagem que esboço é imagem que eu esboço. Outro etnógrafo, com a mesma bibliografia e os mesmos informantes, construiria outra imagem. Fiz escolhas, tive lapsos voluntários e involuntários, estabeleci um ponto de corte temporal para a pesquisa, tenho gostos e me interessei mais por determinadas pessoas e narrativas que outras. Assim, aquilo que desenho é a imagem que escolhi desenhar a partir de peças de um quebra-cabeças, escolhidas no caminho da pesquisa. Este é um quebra-cabeças cheio de lacunas, borrões, pedaços turvos e nebulosos e imagens que faltam. Mas é o que tenho e, Esperança, Vinicius. A Imagem que Falta. 284 diante da peculiaridade daquilo que começarei logo a contar, acredito que tenha valor, tanto numa narrativa etnográfica quanto histórica. Já que me dispus a contar dificuldades, a primeira e maior de todas é que, temporalmente, não estive lá. Lembro-me de estar numa academia de ginástica, a não muitos quilômetros de onde aquilo tudo acontecia, correndo numa esteira, quando, pela televisão, vi, pela primeira vez, ao vivo, as imagens veiculadas pela Rede Globo de Televisão, de homens fugindo pela mata, da favela da Vila Cruzeiro para o Complexo do Alemão. Não imaginei, ali, que, poucos meses depois, estaria envolvido num projeto de tentar entender o que estaria acontecendo naquele lugar. Mesmo que lá estivesse e fosse, portanto, classificado como uma testemunha ocular, também sei que essa seria mais uma narrativa, e haveria outras, muito mais significativas que a de um, então, estudante de ciências sociais sonhando com o mestrado. Ainda que estivesse lá, pouco me aproveitaria já que o que aconteceu realmente dentro da Vila Cruzeiro e, logo depois, no Complexo do Alemão foi interditado a testemunhas civis de fora da favela e também à imprensa. Sabe como foi quem lá esteve seja como "ocupante"/"invasor" seja como morador "civil" ou "soldado do tráfico". Não há nenhuma surpresa na constatação de que cada parte tem uma versão do evento e de que essas versões são bastante diferentes e, muitas vezes, contraditórias. Nem há espanto se aquilo que mais se precisa é justamente a imagem que falta. Esta não deixa de ser, portanto, uma etnografia da ausência, uma etnografia de uma imagem que falta. O acesso que tive ao que aconteceu se deu, então, por aquilo que aqueles que lá estiveram contaram. Esses tiveram tempo suficiente para, através da memória e seus processos, construir uma narrativa. Essas narrativas puderam, de forma consciente ou inconsciente, escolher aquilo que era para se lembrar ou esquecer. Meu papel foi o de selecionar algumas dessas narrativas e analisar seu discurso. Portanto, o que faço neste Esperança, Vinicius. A Imagem que Falta.
doi:10.25160/v4.i2/d10
fatcat:6s2b4qedpra3pkilvlpyuf377y