Ordenações do Reino de Portugal

Ignácio Maria Poveda Velasco
1994 Revista da Faculdade de Direito Universidade de São Paulo  
Resumo: A s Ordenações do Reino de Portugal compilaram o direito positivo lusitano e foram a legislação vigente naquele país e no Brasil por vários séculos. Daí a sua importância. Neste trabalho, além de apresentar u m estudo histórico-jurídico a respeito das mesmas, é oferecido ao pesquisador u m estudo bibliográfico das edições existentes nas bibliotecas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, assim como a documentação necessária para a identificação das obras. Mereceu destaque
more » ... edição das Ordenações Manuelinas de 1539, quer por ser a mais antiga das existentes no nosso acervo, quer por se tratar de obra relativamente rara. Abstract: The Ordinances of the Kingdom of Portugal have compiled the lusitan positive rights and have been the valid legislation ín that country and in Brazil for many centuries. "Ó mar salgado, quando do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão resaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quere passar além doBojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abysmo deu, Mas nelle é que espelhou o céu Fernando Pessoa (Mensagem. Segunda Parte, Canto X -Mar Portuguez) INTRODUÇÃO A finalidade do presente trabalho é divulgar, aos estudiosos do Direito e ao público interessado e m geral, as edições das Ordenações do Reino de Portugal existentes no acervo das bibliotecas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. A s referidas edições chegaram até à Faculdade por caminhos os mais diversos, conhecidos uns, desconhecidos outros. A maioria delas pertence ao acervo da Biblioteca Central; outras a bibliotecas departamentais, notadamente à Biblioteca Eduardo Espínola, do Departamento de Direito Civil. O trabalho começou pela consulta aos fichários e continuou nas prateleiras dos depósitos. Todas as obras relacionadas foram consultadas e manuseadas pelo autor e m longas horas de trabalho. C o m o andamento das pesquisas foi possível cruzar e completar informações desencontradas dos diversos fichários das bibliotecas, constatar o desaparecimento de algumas obras e, felizmente, até resgatar u m a edição das Ordenações Filipinas de 1747, e m 3 volumes, cuja indicação não constava do fichário correspondente e que foi encontrada casualmente ao consultar, numa das prateleiras do depósito da Biblioteca Central, u m volume de legislação extravagante. N u m a biblioteca antiga como a nossa, com mais de 300.000 volumes, formada ao longo dos tempos e nem sempre com critério metodológico acertado, é possível que outras obras raras se encontrem extraviadas no meio do imenso 13 depósito. Desejamos vivamente que isto não esteja acontecendo. N o presente trabalho procuramos realizar, na medida das nossas possibilidades, o levantamento completo dessas preciosidades da nossa tradição jurídica luso-brasileira. Dentre os diversos exemplares examinados, mereceu especial atenção a edição das Ordenações Manuelinas de 1539, pela sua antigüidade, pelo escasso número de exemplares de que se tem notícia e por suscitar algumas dúvidas relativas à sua impressão. Realizamos, até onde nos foi possível c o m os dados disponíveis, u m pequeno estudo bibliográfico e histórico a respeito, finalizando c o m algumas hipóteses a modo de conclusão. Embora não fosse propriamente nossa intenção fazer u m estudo sobre as fontes do direito luso-brasileiro, pareceu-nos, contudo, oportuno oferecer na primeira parte do trabalho u m apanhado histórico que possibilitasse ao leitor u m a melhor compreensão dessas Ordenações, da sua importância histórica e do contexto no qual elas surgiram. 1 A segunda parte é dedicada propriamente ao estudo bibliográfico das edições anteriores a 1800 que, pelos mais variados critérios, podem ser consideradas obras raras. A terceira parte é documental: foi nossa intenção trazer para o leitor não só a informação -e e m alguns casos a descrição -dos exemplares examinados mas, também, u m a documentação que possa ajudar a fixar o patrimônio bibliográfico da Faculdade para a posteridade. A fim de evitar danos materiais às obras, as cópias foram feitas utilizando o "scanner" e recursos outros da informática. Finalmente, pensando e m apresentar u m quadro completo do tema, pareceu-nos oportuno relacionar e m apêndice as edições posteriores a 1800, sem nos darmos ao trabalho, quanto a estas, de documentá-las por serem edições mais recentes, acessíveis ao público por outras vias. A todos os que colaboraram neste trabalho, fazendo-o possível, os nossos sinceros agradecimentos. 1 Para u m maior aprofundamento na História do Direito Português e m geral, e de suas fontes e m particular, indicamos entre outras as seguintes obras: Caetano, Marcello José das Neves Alves, História do direito português: 1140-1495, Lisboa, Verbo, 1981; Silva, N u n o Espinosa G o m e s da, História do direito português: fontes do direito, 2' ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991; Hespanha, Antônio Manuel, História das Instituições: épocas medieval e moderna, Coimbra, Almedina, 1982; Cruz, Guilherme Braga da. " O direito subsidiário na história do direito português", separata da Revista Portuguesa de História, Coimbra, v. 14, p. 177-316, 1975. 14 Parte 1: ESTUDO HISTÓRICO-JURÍDICO 1.1 O R D E N A Ç Õ E S D O REINO D E PORTUGAL. GÊNESE Tendo em vista a consolidação do poder constituído e a melhor distribuição da Justiça, é freqüente na história dos povos, após longo período de produção expontânea, a idéia de compilar a legislação vigente. A antiga lei romana das XII Tábuas, 2 o Código Teodosiano, 3 o Corpus Iuris Civilis, 4 as codificações germânicas e romano-germânicas do início da Idade Média como o Código de Eurico 5 e a Lex Romana Wisigothorum 6 respectivamente, assim como o Fuero Juzgo 7 são, entre vários outros exemplos, prova desta afirmação. Portugal sentiu de modo especial a necessidade de uma ordenação legislativa no inicio do século X V , e m conseqüência de seu amadurecimento histórico. 2 . Promulgada aproximadamente no ano 450 a.C, apresenta u m a síntese das principais regras costumeiras praticadas na época, herança dos três primeiros séculos da história de Roma. 3 Promulgado pelo imperador Teodósio II junto com Valentiniano III no ano 438 d.C, é u m a compilação de Leges -constituições imperiais -e m vigor. 4 . A denominação foi cunhada pelo romanista francês Dionísio Godofredo e m 1538. Iniciada a compilação com a promulgação do Novus Iustinianus Codex, e m 529 d.C, seguiram-se a ele o Digesto e as Institutas e m 533. U m ano depois vem à luz o Codex Repetitae Praelectionis atualizando o Codex Vetus com as novas constituições imperiais. A 4' parte do Corpus Iuris, as Novelas -Novellae Leges-, tal como hoje a conhecemos, é o resultado de coleções particulares que recolheram as novas constituições baixadas por Justiniano de 535 até 565, ano de sua morte. 5 Promulgado por Eurico, rei dos visigodos, e m 476 d.C. aproximadamente, representa u m a compilação de costumes vigentes entre a população germânica do novo reino. Embora se trate de direito costumeiro germânico, a influência romana é grande nessa compilação devido ao trabalho de juristas de formação romanística na sua realização e ao relativo estado de romanização desse povo, fruto de seu longo convívio com a cultura dominada, primeiro as margens do Danúbio, mais tarde na Gália meridional e, finalmente, na Hispânia, onde se fixaram definitivamente. 6 . Promulgada e m Toulouse no ano 506 d.C, recebe também o nome de Breviário de Alarico, e m lembrança de seu idealizador, Alarico II. Essa compilação, a mais importante do início da Idade Média, não continha direito consuetudinário gótico mas, tão-somente, u m a seleção de textos de Direito Romano -leges e iura -utilizada para facilitar a administração da Justiça aos galo e hispano-romanos. 7 Liber iudicum, fórum iudicum ou liber iudiciorum, também conhecido como Código Visigótico, foi promulgado por Recesvindo e m 654 d.C. Aprovado no VIII Concilio de Toledo, é u m a legislação c o m u m a godos e hispano-romanos, obrigatória e m todo o território da península ibérica, unificada desde o reinado de Leovigildo (572-586). É portanto o introdutor do princípio da territorialidade das leis na antiga Hispânia. 15 O s primeiros cem anos da história lusitana -que podemos denominar, com diversos autores, 8 período de formação do Estado Português (1140-1248) 9caracterizam-se pela falta de u m estado estruturado. O Estado Português dessa época, que surge como monarquia autônoma após seu desmembramento do Reino de Leão, reflete u m a sociedade cujo principal objetivo é a guerra de reconquista. Detentora do poder político, a nobreza é a elite militar do reino. A corte do rei, u m exército e m campanha permanente. O estado da reconquista é, pois, u m estado guerreiro para o qual a organização administrativa e a produção do direito não constituem a principal tarefa. Assim, as populações resgatadas ou formadas pelas constantes migrações deste período tendem à auto-suficiência, inclusive no concernente ao direito. Para autores como Gomes da Silva e Kern, 10 isto é, também, resquício daquela mentalidade germânica segundo a qual o rei deve antes observar o direito do que criá-lo. É o rei-juiz e não o rei-legislador. Embora oficialmente o reino continue a se governar pelas leis do Código Visigótico, então legislação geral de todas as Espanhas, 11 as vilas e cidades vão estabelecendo as normas pelas quais se regularão. Assiste-se, deste modo, a u m florescimento do direito consuetudinário e m detrimento da lei escrita. O s costumes, de origem a mais variada, 12 são progressivamente reunidos nos foros municipais. C o m o avanço da Reconquista as duas maiores preocupações tornaram-se o povoamento e a agricultura. Preocupados c o m atrair novos moradores, os reis freqüentemente concediam certos favores e isenções aos que se dispusessem a cultivar a terra e estabeleciam, nas cartas de privilégio, os direitos e deveres que a eles cabiam e m função da extensão da terra distribuída e dos frutos colhidos. Dentre as cartas de privilégio destacavam-se as cartas de foral ou simplesmente forais que concediam aos habitantes de determinada vila preexistente ou a fundar determinadas regalias, principalmente de caráter fiscal e 8 . Assim, Caetano, ob. cit., p. 31. 9 . Mais especificamente, 1140 é o ano e m que D. Afonso Henriques passa a se auto-intitular rei de Portugal. A independência de Portugal é selada no tratado de Samora, de 1143, quando o rei Afonso VII de Leão, mediante a intervenção do Papa Inocêncio II, lhe reconhece esse título. 10 . Cf. Gomes da Silva, ob. cit, p. 138 e nota 1 à mesma pág. 11 Cf. Prefação da edição conimbricense das Ordenações Afonsinas de 1792, p. II.
doi:10.11606/issn.2318-8235.v89i0p11-67 fatcat:unz5ahoqhngrxauiwkx7pwjr5e