Som de Valente: bailes negros em São Paulo [thesis]

Igor Santos Valvassori
À Regina Ferraz dos Santos e Nelson dos Santos (in memoriam ). Para Luana Angelo, Victor e Alicia: minha família, meu amor. À Maria de Fátima Santos, minha mãe valente. Às mulheres negras. À Beatriz do Nascimento e Maria José Menezes, que pavimentaram caminhos dentro da Universidade para nós. AGRADECIMENTOS "-Olhe para nossa geladeira. Tem feijão congelado, batata... tem arroz. Tem mistura... As dificuldades? O que fazer? Superamos!" No limite esta frase de Luana Angelo, companheira e esposa,
more » ... rece de alguém que vive com salário mínimo. Não é. Mas ela demonstra, por outro lado, as dificuldades, os apertos, a energia gasta para que isto, estas palavras estivessem em um papel, que fossem lidas, aprovadas, publicadas. Muita energia pessoal, "força psicológica", mas também vacilos, crises, medos. O contexto da conversa era um balanço dos avanços e percalços da casa, da relação, dos estudos, do cuidado com os filhos, da vida. A vida: cheia de meandros, de um rio que nasce fino e se torna caudaloso. Não sei definir se Luana é a calha desse rio (sua estrutura, sua marca, sua forma e existência), ou sua água (força, fluidez, movimento), se é nascente, se é força, se é sua magia. Sei que somos rio, que denominamos Yewa: força, natureza, que transforma a paisagem, carreia materiais, transporta, transborda, grafa morfologia e a transfigura. E deságua em algum ponto, depois de meandros, curvas, das montanhas, além do horizonte. A força de Luana Angelo ao meu lado me trouxe até aqui. Obrigado! Com carinho agradeço aos meus filhos, que me ensinaram a ser quem sou (neste momento), que suturaram feridas profundas, que alimentam constantemente uma alma sedenta em vê-los felizes, sorridentes, fortes, amáveis, e respeitosos, e se respeitando. Victor e Alicia são meus amores, minha alma, meus amigos, meu encontro diário com meu presente, passado e nosso futuro. Amor infinito. Minha mãe, que está ao meu lado e ao lado de meus filhos, obrigado. Sua história é a chuva onipresente, que molhas as plantas, as matas de Oxóssi e a nascente de Oxum. É Iansã, é Xangô presentes em minha vida. Agradeço a Tia Irene, vencedora das vencedoras. Bandeira, bastião, espada, escudo, abrigo, legião. Agradeço à Maria Helena (Tuta), tia querida, que me forjou. Tudo isto aqui é para homenagear sua grandeza nesta vida de São Paulo. A grandeza não se mede aqui somente em palavras assertivas, em gestos benevolentes. A grandeza é a do vencer e viver. Sair de casa, encarar o mundo e vive-lo ao seu modo. Lá do alto da casa de Karabá o sentinela tudo acha ruim, pois sua vida é o "não-movimento". Mas Kiriku corre faceiro por todos os campos usando sua astúcia. Ele se incomoda com o jeito do sentinela, mas tem muita coisa pra resolver antes de compreender por que aquela estátua, que parece ter somente os olhos vivos, foi parar ali. À minha família, sempre, com carinho! Tudo inspirado em cada detalhe que estão em vocês. Rosely de Fatima Silva e Vânia Gonzales, obrigado pelo apoio e pelas palavras de incentivo. Ao Sr. Francisco, Seu Chico, meu sogro, umas das grandes pessoas que eu conheci na minha vida: a vida me deu esse PAI! Vera, minha chefe, cuja paciência é paga com lealdade, obrigado! Agradeço as amigas do Serviço de Graduação, Vilma, Rosineide, Ana Carmen e mais recentemente a Roberta. Na FMVZ menciono também as docentes Mayra Assumpção, Silvia Cortopassi, José Grisi, Lilian Gregory e Eliana Matushima. E muitos afluentes e influências alimentam o Rio Yewa e o torna sinuoso, caudaloso, rio da vida. Ao NEPEN GEO-USP que me inspira, me acolhe e me ensina: Amanda Moraes, , e toda a galera que se reúne as sextas no Labur. E obrigado Jennifer Terriaga, pela ajuda nos mapas. À Simone Scifoni, minha orientadora, amiga, que sabe ensinar e fortalecer, redesenhando a forma de ser docente. Ao seu grupo de orientados, pela parceria: , quero ser companheiros de vocês novamente, na nova trilha, a do doutorado. Ao Sampa Negra projeto no qual neste momento lembrarei de Isabela Santos, Fabiano Ramos, Amanda Cosmo, Josiane Rodrigues, Nina Vieira. Obrigado por me inserirem na rede negra. Momento especial desta trajetória foi ser aluno da professora Ecléa Bosi. Tardes lindas, e de bons debates, em que alunas e alunos eram os protagonistas, mas a presença de Ecléa era fundamental. Seu modo singular de compreender as trajetórias de vida de cada um é um tesouro que carregamos, fomos testemunhas seu brilho. Assim, nestas tardes no Instituto de Psicologia, conheci Viviane Angélica, grande parceira, que me enegreceu com seus contos, com suas falas, com sua postura. Obrigado! Às famílias pretas da Zona Leste: Clélia Rosa e Alexandre Silva, Rogério Ba-Senga e Ana Paula Xongani, Egnalda Cortês, Josimar e Adriana Quilombos e Uiacá, pois se me sinto forte, se tenho esperança no futuro, é porque me vejo em vocês e com vocês. Ao Cuti, à Marinete Floriano e ao Quilomboletras, que alimentou a sede de palavras e abasteceu o forno das ideias. Ao Humberto, Valéria, Raisa e Moira, Catharina e Leonardo. Valvassoris. Lívia Fioravanti grande amiga, parceira. Obrigado pelas palavras de carinho, pelos avisos atenciosos, pelas dicas, pelos papos, cafés, por dividir um cadinho de sua vida comigo, e por aceitar eu dividir um cadinho da minha, contigo. Certamente temos uma grande trajetória à frente em parceria! O momento da qualificação é outro marco nesta trajetória e que me levou a conhecer alguém que quero carregar para vida: Prof. Salloma Salomão Jovino da Silva. Sua existência poética e suas perguntas agudas são ferramentas que abrem caminhos em trilhas espinhosas. São, portanto, o cuidado ancestral. A universidade pública no Brasil perde em não tê-lo em seus quadros formativos. Já a Profª Amélia Damiani, que também fez parte da banca de qualificação é aquela amiga, que mesmo distante, admiro. Com ela dei os primeiros passos na geografia que acredito, com ela assentei o primeiro tijolo de confiança em mim, em meus pensamentos e insights. O edifício se renova, e se transforma, por que o alicerce é sólido. Agradeço também as professoras Glória Alves, Valéria de Marcos que sempre me apoiaram. Professor Salloma Salomão esteve também no momento da defesa ao lado de Isabel Alvarez e Juarez Xavier. Tenho somente palavras de agradecimento pela leitura atenta, pelos caminhos abertos, pelas excelentes arguições. Sobre este dia também, agradeço as pessoas presentes, e em especial ao Gustavo Pagador e Marcus Chagas que efetuaram registros. Neide Salles e Flavinho Kutuka, obrigado pelos fundamentais depoimentos. A todos os amigos. Lembro aqui, neste momento, com carinho de Thiago Escafange, Lima Lopes e Leonardo Marras. Um agradecimento também a Drª Cleide Bezerra, que me amparou no difícil momento final. À Luiz Carlos Morais de Souza (DJ Azeitona -Luizão) da FMVZ, em memória. À Iemanjá e Ogum, forças vitais que me sustentam. E aos ausentes-presentes deixo aqui um parágrafo que escrevi nos tempos da graduação: "Agradecimentos" é um daqueles textos que construímos no cotidiano, da universidade, em casa e em todos os grupos, espaços, atividades que fazemos. Não é um exagero dizer que foi escrito antes mesmo do texto final da pesquisa, antes mesmo de se começar a pesquisar. E se guardássemos as folhas de rascunho (extra-texto?) dessa obra que é o texto dos agradecimentos, elas estariam certamente bastante grifadas, com trechos acrescentados, corrigidos, rasurados... Páginas vivas! Ler agradecimentos ora é surpreendente, ora é previsível, sem deméritos. E uma dessas coisas previsíveis, quase um axioma dos agradecimentos, é dizer que nomes podem ser esquecidos, e por isso pedir desculpas a essas pessoas. Faço o mesmo. Sempre digo que os laços de amizade são os mais diversos. Há pessoas muito queridas que temos pouco contato, outras estão diariamente conosco. São relações diferentes e que nesse momento de agradecer por tudo -pois esse é um texto que marca a formação e a conclusão de um sonho, que não é pessoal, mas da família inteira, dos amigos -, em que graduar e se formar sintetiza uma série de caminhos percorridos, esses diversos tempos -e temporalidadesconvergem, e é difícil lidar com isso. Amigos antigos, amizades que nos ajudam tanto no cotidiano da universidade... "pecado" é "crucificar" o pobre do autor por ter esquecido algum nome. Mais uma vez, gratidão! Sempre Empenhado! "Essas melodias mata o véio" (Nelson dos Santos) RESUMO VALVASSORI, Igor Santos. Som de Valente: bailes negros em São Paulo. 2018. 187f. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) -Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. A pesquisa tem como questão principal qual o significado dos bailes negros para São Paulo e para a problemática urbana. O baile, enquanto significante inscrito no espaço-tempo da metrópole, carrega quais significados para os seus frequentadores, para quem não frequenta, para quem pensa em saídas para esse (re)produzir desumano da cidade? Diante desta pergunta, a partir do método de análise progressivo-regressivo proposto por Henri Lefebvre, utilizando-se de pesquisa bibliográfica, entrevistas, observações de campo e coleta de materiais a discussão inicia-se a partir do baile nostalgia, manifestação cultural contemporânea dos bailes negros. Partindo do baile nostalgia, a pesquisa foi conduzida por toda a trajetória da relação da população negra com os bailes desde o pós-abolição, em que três períodos com características específicas foram categorizados: os bailes negros, do pósabolição ao ano de 1958; os bailes black, de 1958 até 1994; e os atuais bailes nostalgia, de 1995 até 2016, ano privilegiado nas observações de campo e entrevista. Os bailes foram compreendidos como uma forma de encontro com conteúdos ligados às lutas, às resistências e ao vivido da população negra em São Paulo em articulação com o processo de produção deste espaço urbano, que se faz de forma desigual socialmente e racializada. Entre estes conteúdos estão a produção de uma vida pública na cidade, a relação centro-periferia que se configura no meio do século XX e a memória corporal, coletiva e política dos negros em um contexto em que a reprodução do espaço se faz produzindo espaços amnésicos e uma sociabilidade de tempo efêmero, que atinge diretamente os referenciais de identidade e vida da população paulistana. Os significados dos bailes negros para São Paulo, então, são diversos, tecidos em uma trama na qual a rede negra se faz e refaz tendo o baile como um de seus nós. Os bailes significam, para negros, brancos e pobres também um viver a cidade na contra-lógica da reprodução do espaço sob a lógica capitalista que nega a vida constantemente em favor da superação crítica de suas inerentes crises de reprodução. ABSTRACT VALVASSORI, Igor Santos. Sound of Brave: "Bailes Negros" in São Paulo -Brazil. 2018. 187f. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) -Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. The research has, as its main question, what is the meaning of "bailes negros" for São Paulo and urban problematic. The "baile" (ball) while a signifier enrolled in the space-time of the metropolis carries what meanings to its attendants, to those who do not attend, to those who think of exits for this inhuman (re) production of the city? Based on the method of progressive-regressive analysis proposed by Henri Lefebvre, using bibliographical research, interviews, field observations and material collection, the discussion begins with the "baile nostalgia", a contemporary cultural manifestation of the "bailes negros". Starting from the "baile nostalgia", the research was conducted through the whole trajectory of the relation of the black population to the dances since post-abolition, in which three periods with specific characteristics were categorized: the "bailes negros", since abolition of slavery till 1958; the "bailes black", from 1958 to 1994; and the current "bailes nostalgia", from 1995 to 2016, principal year in the field observations and interviews. The dances were understood as a form of encounter with contents related to the struggles, resistances and experienced of the black population in São Paulo in articulation with the process of production of this urban space, which is done in a socially and racialized unequal way. Among these contents are the production of a public life in the city, the center-periphery relationship that is set in the middle of the twentieth century and the corporal, collective and political memory of blacks in a context in which the reproduction of space is done producing amnesic spaces and an ephemeral sociability of time, which directly affects the identity and life referents of the population of São Paulo. The meanings of the "bailes negros" for São Paulo, then, are diverse, woven into a plot in which the black net is made and remakes having the ball as one of its nodes. The dances mean, for blacks, whites and poor people, to live the city in the counterlogic of the reproduction of space under the capitalist logic that denies life constantly in favor of the critical overcoming of its inherent crises of reproduction. Ao menos o processo me fez ser um cadinho mais humano num mar de desumanidade que se reproduz. Sabe-se lá -talvez os ancestrais saibam -pra que lado a coisa vai caminhar a partir de 08 de outubro de 2018. Mas aqui estou conseguindo sair da página em branco. Aqui estou, consegui olhar para meus rascunhos, textos já escritos, e ficar à vontade entre eles, quando o mundo não invade meus poucos minutos de atividade real. Como no aforisma de Adorno (2008, p.83), indicado pelo meu primo filósofo e educador Vinicius Xavier: No seu texto o escritor se põe à vontade como em casa. Do mesmo modo como gera desordem ao carregar de um aposento a outro papéis, livros, lápis e pastas, assim também ele se comporta nos seus pensamentos. Eles se convertem em móveis, nos quais se acomoda, fica confortável, se irrita. Ele os acaricia, os usa, mistura entre si, modifica suas posições, os estraga. Estou, na empatia da dor, no calor da esperança, em casa novamente. Essas páginas que seguem são e serão o resultado desta escrevivência. M R P R O E Procuro as minhas formas Formas de ações negras Sentidos Um jeito de reorganizar meu mundo. Com raiva de formas feitas Que só me atém pelos defeitos Busco neutralizar os efeitos Noutras formas de organizar. Riscos... Riscos de largar básicos vícios E batucar na embriaguez carnal da noite Sem cachaça sem sutis açoites. Riscos em desatar os nós Que não nos permitem ser o que somos E cair no vazio das formas ainda não criadas De deixar pasta e peruca E enfrentar a agressividade consciente do pixaim. Riscos... Riscos de inventar perspectivas Novas perspectivas para as doenças culturais. De abandonar a alma branca E ver que ela nunca teve cor. Riscos de descontrolar o exterior controle sobre mim. De abrir a gaiola E não suportar as altitudes do vôo. Riscos Riscos que afirmam que eu romperei as Formas O que ficou em mim Formas de pensar de sentir Formas de repartir o homem e não saber recompô-lo. Brancas formas Que enlaçam-me em fumaças e odor etílico Em gingados mancos e eletrodomésticos, Em visão retilínea quando a terra é redonda Em samba engraçado e vontades alienantes Em desodorantes e volantes de loteria Tudo como antes Brancas formas Brancas intenções formais Amarrando meus passos, Muitas pressões inquilinas no meu próprio ser A destruir o que tenho em mim De criador da vida. Nasci para criar E para tal Correr riscos de ficar no ar Na destruição dos obstáculos formais. Sei Sei que vencerei Se for mais Muito mais Que os obstáculos formais Ao criar o jeito do meu ser real. (CUTI, 1978, p. 74-77) INTRODUÇÃO Suave Momento Negro O dia deixa-se passear sobre o volumoso negror da pele O extasiante motivo de ser glóbulo alerta nas veias sociais De ser verdadeiro nas razões de vencer em segredo Na quietude do sol Calor silencioso e luz lentamente borbulhante De momentos contínuos e pedaços de vitória Sorriso franco nos olhos do menino A explosão do amanhã contida na sinceridade profunda da melanina em cada molécula do irmão Que chega apesar da cisma-restos do dominador, No ritmo dado pelos antigos Para formar o colar de esperanças vivas no pescoço da Liberdade.
doi:10.11606/d.8.2019.tde-22032019-103557 fatcat:xhqev7eb2ncydfeskpdczcj3dm