Na ilha do boi de pano: uma reportagensaio para além do dogma da objetividade jornalística [thesis]

Patricia Sales Patricio
Resumo Uma reportagem de tema amazônico -o Festival Folclórico de Parintins -abre caminho para investigar as possibilidades pragmáticas de uma proposta que evita o distanciamento objetivo ou a "objetividade possível" tal como dito nos manuais de redação jornalística. A tese busca uma estratégia, nomeada de transubjetividade, que intensifica o diálogo e tenta articular, na construção da reportagem, os aspectos: objetivo, subjetivo, intersubjetivo, e normativo (como indica Habermas). Para
more » ... essa meta é preciso reconhecer o impulso subjetivo que leva à gênese da reportagem -mas sem que o autor se torne o centro da narrativa; respeitar o próximo além de seguir as normas éticas da profissão; fazer referência ao real aprofundando nas questões "Quem? O quê? Quando? Onde? Como? Por quê?"; e praticar a intersubjetividade na mediação social, para compreender aqueles que atuam na experiência coletiva do presente. | Abstract A story behind an Amazonian theme -Parintins' Folk Festival -leads a way toward the investigation of the pragmatic possibilities of a proposal that avoids the objective and distant posture or the "possible objectivity" such as said in the journalistic stylebooks. This thesis searches a strategy, named transubjectivity, which reinforces the dialogue and tries to articulate in the report the objective, subjective, intersubjective and normative aspects (as Habermas points). To achieve this goal it is needed to recognize the subjective impulse which leads to the genesis of the report -without the author becoming the center of the narrative; being respectful beyond the ethical/normative rules of the profession; making reference to the real by deepening the questions "Who? What? When? Where? How? Why?" and practicing intersubjectivity in social mediation, in order to comprehend the ones who act in the current collective experience. | Sumário Abrem-se as cortinas 11 Apresentação da proposta 12 Opções metodológicas 15 Parintins está em festa 21 Na ilha do boi de pano 25 Mapa de Manaus -Parintins 26 Ato I 27 Ato II 77 Ato III 101 Fecham-se as cortinas e abrem-se as trilhas teóricas relidas 118 Teoria e prática: questões abertas 119 A linguagem dialógica 123 A aventura da percepção 137 Uma pedra no caminho da percepção: o estereótipo 139 À guisa de conclusão interrogativa 143 Referências bibliográficas 155 | Abrem-se as cortinas | 12 Apresentação da proposta O questionamento dos dogmas constituídos no fazer jornalístico e a elaboração de uma proposta alternativa, não-dogmática, vem me ocupando desde a dissertação de mestrado, onde questionei a noção de objetividade nos manuais de redação. Na pesquisa, descobri que na deontologia jornalística, a "objetividade se relaciona diretamente, e por vezes se confunde, com a concisão, a verdade, a exatidão, a clareza, a neutralidade, a isenção, o apartidarismo, a pluralidade, que se erguem como os pilares básicos dentre as normas dos manuais" (PATRÍCIO, 2002:6). Desde a construção de Tirando o manual do automático percebia a urgência de fugir do jornalismo declaratório, uma das doenças crônicas mais insidiosas que abatem as redações. Seus sintomas: o excesso de frases entre aspas (as tais declarações), seguidas por verbos dicendi usados muitas vezes de forma imprópria ("afirma ele" quando o entrevistado simplesmente contou uma história ou levantou uma informação, sem intuito de afirmar categoricamente). O método -ou falta dele -consiste em acomodar-se na entrevista por telefone e, pior, por email. Falta observação de campo, falta "a rua" com seus cheiros, gostos, texturas. Esse jornalista incompleto se baseia em apenas uma visão de mundo engessada e uma audição parcial para "pegar as aspas" e completar o raciocínio pedido pelo Editor ou mesmo aquele que mora na cabeça do executor da pauta, que nem merece o nome de Repórter. Portanto, eis o diagnóstico da doença declaratória: reportagens pobres, que mesmo ouvindo o "outro lado" não suscitam o debate muito menos convidam o leitor/expectador/navegador a participar dela. Efeito colateral: a desconfiança e mesmo uma certa demonização endereçada aos jornalistas por parte de cientistas, políticos, figuras do poder ou do show-business, e também por parte do cidadão comum: "jornalista sempre ouve e não escuta, e aí distorce tudo o que a gente fala", frase muitas vezes coberta de razão; ou na piada infame:"de advogados e jornalistas o inferno está cheio". Em Tirando o manual do automático, a revisão bibliográfica do mestrado estudou a noção de paradigma (Thomas Kuhn) e os autores da hermenêutica, Habermas e Gadamer -especialmente este filósofo fertilizou as noções de "senso comum" e jogou luzes | 13 sobre a ilusão de "neutralidade". Estas duas palavras-chaves se mostraram presentes em diálogos com os autores dos manuais de redação (Luiz Garcia n´O Globo, Eduardo Martins no Estadão, Carlos Eduardo Lins da Silva (Grupo Folha), Marília Scalzo e Carlos Maranhão (Editora Abril). "Senso comum" é mote de uma geração que tem saído, aos poucos, da Editora Abril desde o ano 2001, como detectado ao final da dissertação -Marília Scalzo deixou os quadros da empresa após esta autora, que desligou-se do grupo para fazer o doutorado em 2003. "Neutralidade" é mais típica do discurso Folha. Tudo isso se vê no capítulo dedicado à análise de conteúdo dos manuais de redação. Deixemos a recapitulação de lado para atentarmo-nos ao que importa para este trabalho, a proposição que resolvi chamar transubjetividade. A partir de um insight logo após o exame de qualificação e a releitura de trechos de Verdade e Método, de Hans-Georg Gadamer, o neologismo surgiu: "A objetividade, noção surgida do eu subjetivo, jamais poderá ser alcançada em sua plenitude. Porém, se cada um se fechar em sua própria subjetividade, não existe comunicação. Portanto, a saída possível é exercitar a intersubjetividade, o diálogo do eu com o outro, e mais, a transubjetividade, articulação entre objetividade, subjetividade, normatividade e intersubjetividade. Isso não significa, simplesmente, reproduzir declarações, mas fazer com que dialoguem entre si, abrir os poros para o não dito, produzindo significados ricos, que ajudem na compreensão/apreensão da realidade." (PATRÍCIO, 2002:105). Durante seis semestres me debruçara sobre o estudo e crítica da noção de objetividade, conhecera mais a fundo os defensores da intersubjetividade. Havia atravessado o deserto de Habermas e sua Teoria da Ação Comunicativa. Irrigada, como disse, pela oficina da qualificação e pela releitura de Gadamer, defendi que, em vez de se apegar unicamente à objetividade, o jornalista deve equilibrar a objetividade para a referência ao real de sua pauta jornalística, a subjetividade em seu processo criativo, a intersubjetividade no diálogo com suas fontes (e seus leitores) e a normatividade das regras deontológicas da profissão. Isso, sem sobrevalorizar nenhum dos aspectos, sempre tendo os quatro em vista -foi o que chamei transubjetividade. 1 As reuniões mensais do Núcleo de Epistemologia do Jornalismo da ECA/USP, em que Cremilda Medina reúne seus orientandos, incluem também os pesquisadores do Programa Latino-Americano de Pós-Graduação (Prolam), como Eduardo Geraque. Os encontros, férteis e solidários, oferecem a oportunidade de os alunos saírem da solidão da pesquisa e trocarem idéias entre si e com a orientadora. Além da produção individual dos pós-graduandos, há os livros da série Projeto Plural, organizada por Medina. Desde 1992, pesquisadores, jornalistas, pensadores e artistas colaboram em estudos, debates e ensaios sobre temas da atualidade. Conta com oito livros e Ciência e Sociedade: mediações jornalísticas (2005), o mais recente, foi editado a partir de um debate na Estação Ciência. | 16 car em exemplos da Universidade de São Paulo. A fértil produção de Medina, inconteste no campo do jornalismo e da comunicação social, oferece subsídios para qualquer aprendiz de feiticeiro ensaiar o signo do diálogo e vivenciar a sublime arte da relação. Citarei apenas alguns títulos importantes, como Entrevista, o Diálogo Possível, Povo e Personagem, A Arte de Tecer o Presente, sem contar a série São Paulo de Perfil, da qual sou participante ativa desde 1993, e o Projeto Plural, que conta mais de uma década. A arte de tecer... em sua primeira versão, dos anos 70, foi escrita a quatro mãos com "O negro está nos congos. O português no fandango ou marujada. O mestiço, crioulo, mameluco, dançando, cantando, vivendo, está no bumba-meu-boi, o primeiro auto nacional na legitimidade temática e lírica e no poder assimilador constante e enérgico." (CAMARA CASCUDO, 1988:153) O boi brinca de cabecear Mãe Catirina No auto do boi, Mãe Catirina está grávida e desejosa de comer língua de boi. Pai Francisco então mata o animal, que é o preferido da sinhazinha. Seu pai, o amo do boi, fica furioso, e faz de tudo para ressuscitar um animal. O pajé consegue o feito ao fim de um ritual que alegra a todos na fazenda. Mãe Catirina e Pai Francisco, negros, são personagens cômicos da representação.
doi:10.11606/t.27.2007.tde-23072009-203051 fatcat:f7tn4ubuejet5aoox76mxovgme