Entre Melville e Cage: Silêncios

Itamar Aparecido de Oliveira
2015 FronteiraZ  
Sobre o silêncio, encontramos no dicionário Houaiss ser "estado de quem se cala ou se abstém de falar [...], ausência ou cessação de barulho, ruído ou inquietação". Percebe-se facilmente que essa palavra possui, pelo menos, natureza dupla, pois bem diferentes são os estados de quem se cala e de quem se abstém de falar. No primeiro caso, um silêncio decorrente de certo ruído que cessa, silêncio-ausência; no segundo, de um ruído potencial que não se realiza, silêncio-presença. Contudo, é
more » ... e mais comum encontrarmos seu uso relacionado à própria etimologia da palavra: silentium, silere (calar-se, não dizer palavra). Silêncio que se mostra de modo previsível, sempre o mesmo, respeitando as leis de seu próprio calar. Quando, no último movimento da nona sinfonia de Mahler (1860 -1911)após a tempestade de caos, o turbilhão de desordem, confuso, rápido e irreflexivo, sentidos no terceiro movimento -, os instrumentos cessam suas atividades, aos poucos, aos naipes, até que, esfacelando notas e dissolvendo acordes, o silêncio se apodera do local, precisamos experienciar essa ausência plena. O bom maestro a estenderá por alguns segundos, porque trecho da partitura; o público razoável não aplaudirá antes que esses segundos decorram, sob o risco de não usufruir de parte significativa da sinfonia, ainda que por alguns instantes apenas. Em Mahler, o silêncio-ausência materializa-se sob a forma de inexorável calar. Estudos -Itamar Aparecido de Oliveira 253 De outra ordem é o silêncio de John Cage (1912-1992), compositor norteamericano representativo do movimento atonal, aleatório e eletroacústico. Sua Ambos, Bartleby e 4'33", estabelecem-se na linguagem, musical neste, escrita naquele. Ambos procuram um instante anterior ao ato, um momento, sem tempo e sem espaço (daí decorre a dificuldade em apreendê-lo) no qual tudo encontra-se em devir: pura potência que não quer se realizar, preferindo esse estado limiar, de ser e não ser, um estado de silêncio-presença. Mas, como dissemos, não são idênticos. A diferença entre as duas obras instala-se no coração do silêncio. 4'33" rompe com todo significante: não há acorde tocado, não há ruído, nenhum barulho oriundo da orquestra, mas o referenteimaginário apenascontinua como possibilidade; é-nos possível pensar na obra, antecipar o porvir; imaginar a sonoridade ausente (e paradoxalmente presente). Bartleby, por sua vez, é puro significante: seu referente foi extirpado pela repetição e, ao fazê-lo, apresenta a possibilidade da língua pura. Por caminhos diferentes, as duas obras novamente encontram-se: provam-nos que no possível, na potência, encontra-se a força geradora de todo o factível. E, se apreciar o realizado é deleite infinito, quão feliz será o homem que abraçar o inapreensível?
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