Antropologia do desporto: o reencontro com Hermes
Rui Proença Garcia
2020
Nota prévia Como professor da disciplina de Antropologia do Desporto no curso de licenciatura da Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física da Universidade do Porto, perguntamos todos os anos aos nossos alunos, logo na primeira aula, que ideia é que têm sobre esta disciplina. Invariavelmente as respostas convergem para o estudo das culturas do passado, do exótico, das actividades associadas ao mundo rural e para o estudo dos jogos tradicionais. Quase ninguém associa a Antropologia
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... Desporto ao estudo do homem que pratica desporto. Admitimos que para a criação daquela ideia contribuam algumas capas de livros, justamente intitulados de Antropologia do Desporto, escritos em diversas línguas, que invocam o exotismo, por vezes conotado correcta ou incorrectamente com o «primitivo», para se revelarem 1 . Normalmente os alunos associam o estudo do passado a-histórico ao antropólogo, o passado histórico ao historiador e ao sociólogo associam o estudo das sociedades modernas, em especial a abordagem àquilo que decorre nas cidades, no quotidiano. Poucos são os alunos, mesmo dos cursos de mestrado 2 , que vêem a antropologia como uma ciência (ou conhecimento) do homem e não apenas como uma visão do passado intemporal, quiçá arquétipo, com contornos narrativos ou fabulosos, fatalmente desprovidos de valor científico. 205 ------------* Professor Catedrático da : Ediciones Bellaterra, 1985, em cuja capa se apresenta uma fotografia de dois homens lutando e muitos outros assistindo, talvez tirada numa qualquer povoação africana. 2 A Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física da Universidade do Porto lecciona no presente momento seis cursos de mestrado, dos quais cinco comportam a disciplina de Antropologia do Desporto ou afim, o que revela a enorme importância atribuída à análise cultural para a consecução da superior missão da Faculdade. Porém, o tempo muda e com ele mudam-se, com rapidez 3 , algumas concepções que grassaram no estudo do desporto. Hoje, e tal visão é pacífica, a Antropologia do Desporto volta-se decisivamente para as pessoas, sejam elas do mundo da ruralidade sejam, e cada vez o são mais, do mundo urbano. A antropologia entrou sem receios na cidade, no shopping center -verdadeiro ágora 4 da con-temporaneidade -, nas sofisticadas academias onde se cultua o corpo, e nos estádios -autênticas catedrais do desporto moderno 5 . Porém, nesta diversidade topográfica, a Antropologia do Desporto não abandona a compreensão do passado, pois este é o garante da nossa condição humana que se expressa numa identidade constantemente renovada, mas, qual paradoxo, assente em valores comuns que importam preservar. E aqui é da mais elementar justiça relembrar nomes de ilustres investigadores que olhando para o passado souberam, e sabem, projectar o futuro, casos do saudoso Professor Noronha Feio e do Doutor Mário Cameira Serra, que lá no interior serrano, na cidade da Guarda, tem conseguido dar vida a este pensamento. Por outro lado, é curial referir o nome do Doutor Jorge Crespo, sem dúvida alguém que ajudou a credibilizar a antropologia sobre as coisas do desporto. Finalmente, para concluir este breve intróito, urge afirmar que a antropologia não está sozinha no papel de conferir um significado humano ao desporto. Se uma das exigências da modernidade 6 foi o esboroar do homem (um discurso em estilhaços, nas palavras de Baczko 7 ) em áreas de estudo para que assim melhor pudesse ser explicado e compreendido, actualmente uma das tarefas mais gratificantes que se coloca ao investigador é o de proceder a sínteses integradoras do ser humano, pelo que antropologia, sociologia, filosofia e mesmo pedagogia dão as mãos entre si, projectando-as para outras áreas, com o fito de sustentarem uma ideia de pessoa praticante de desporto. A Antropologia do Desporto, longe dos grilhões impostos por visões parcelares do ser humano, convoca outros saberes para tentar essa ciclópica e infinita Rui Proença Garcia 206 ------------3 Se a mudança é uma constante das sociedades humanas (como nos canta Camões: Mudam-se os tempos / Mudam-se as vontades / Muda-se o ser / Muda-se a confiança / Todo o mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades), o que particulariza o nosso tempo é a velocidade com que ela se desenvolve. 4 Do grego agorá, sendo o grande centro cívico das cidades gregas, onde as pessoas se reuniam para o comércio, convívio, manifestações sociais e religiosas, etc. (de acordo com a Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, Edição Século XXI. Lisboa: Editorial Verbo, vol. 1, pp. 843-844). 5 É bem recente, Outubro/Novembro de 2003, a discussão emotiva sobre qual é a verdadeira catedral do futebol português, polémica essa veiculada pela comunicação social, particularmente pela imprensa desportiva. 6 Julián Marías considera que a filosofia ocidental conserva esta fragmentação, sendo já visível, provavelmente mesmo proveniente, na Grécia Antiga.
doi:10.34632/povoseculturas.2004.8828
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