Autocuidado: Um Foco Central da Enfermagem [article]

2021
Nas últimas décadas, o termo autocuidado passou a fazer parte da linguagem comum dos cidadãos, tendo sido as redes sociais e o marketing os grandes responsáveis pela sua divulgação. É frequente encontrarmos a expressão "autocuidado" associado a produtos, que vão desde programas de fitness, alimentos e nutrientes, livros e revistas, cosmética, bem como serviços que promovem a saúde e o bem-estar físico, emocional, social ou espiritual� Ao tentar encontrar a origem da palavra "autocuidado"
more » ... -nos no tempo, sendo difícil atribuir a sua origem a um autor específico. Há quem atribua a Sócrates, considerado o pai de Medicina, mas também muitos tendem a conceder a Escola Superior de Enfermagem do Porto Autocuidado: Um Foco Central da Enfermagem decisão e reflexão sobre o autocuidado, afirmando que poderemos ter um autocuidado suficiente ou insuficiente, racional e reflexivo ou automático e não racional. É na dinâmica destas combinações que poderemos ter a situação ideal de ter uma atitude reflexiva e um autocuidado suficiente (Figura 2). Figura 2. Relação da tomada de decisão e reflexão sobre o autocuidado, segundo Riegel Segundo Rockwell e Riegel (2001), os comportamentos gerais e terapêuticos de autocuidado são influenciados por variáveis predisponentes como o autoconceito, motivações e perceções de saúde. Também as características da pessoa (escolaridade, idade, nível socioeconómico e sexo), o seu estado psicológico, as características do regime terapêutico, os recursos, a capacidade de agir, o suporte social e as características do sistema podem funcionar como variáveis facilitadoras. Em síntese, das diferentes abordagens do autocuidado, salienta-se algumas comunalidades, na medida que é específico da situação e da cultura, envolve a capacidade de agir e fazer escolhas, é influenciado por conhecimentos, habilidades, valores, motivação, locus de controlo e eficácia, e foca-se em aspetos da assistência à saúde sob controlo individual (Wilkinson & Whitehead, 2009). TEORIAS DO AUTOCUIDADO A Teoria de Enfermagem do Défice Autocuidado desenvolvida por Orem é uma teoria geral, que engloba três teorias: a Teoria do Autocuidado, que descreve como e porquê as pessoas cuidam de si; a Teoria do Défice de Autocuidado, que descreve e explica a razão pela qual as pessoas podem ser ajudadas através dos cuidados de enfermagem; e a Teoria dos sistemas de Enfermagem, que descreve e explica as relações que têm de ser mantidas para que se faça Enfermagem (Orem, 1991). A Teoria do Autocuidado fundamenta-se em cinco conceitos centrais relacionados: a ação do autocuidado; a capacidade de autocuidado; a necessidade de autocuidado; o défice de autocuidado e a intervenção de enfermagem. Os quatro primeiros conceitos estão orientados para as pessoas que necessitam de cuidados de enfermagem, enquanto que a intervenção de enfermagem, está orientada para o enfermeiro. A autora (Orem, 1991) apresenta ainda um outro conceito, denominado requisito de autocuidado, e um periférico, que são os fatores condicionantes básicos. Assim, segundo Orem (1991) a ação do autocuidado representa as atividades desempenhadas pelos indivíduos, de forma deliberada, para a manutenção da vida, da saúde e do bem-estar. Sendo, por isso, um fenómeno ativo, voluntário e intencional que envolve a tomada de decisão. O desenvolvimento das práticas do autocuidado é um processo pelo qual as atividades são aprendidas, sendo determinadas pelas crenças, hábitos, costumes e práticas culturais do grupo, ao qual pertence o indivíduo que as executa. A capacidade de autocuidado refere-se à capacidade de desempenho adquirida e utilizada pelo indivíduo para efetuar as atividades de autocuidado. A necessidade de autocuidado constitui a soma de ações necessárias, em momentos específicos, ou durante um período de tempo, de modo a satisfazer os requisitos de autocuidado. Esta inicia-se ao determinar o comprometimento dos requisitos necessários para o cuidado. O défice de autocuidado existe quando a capacidade de ação do indivíduo não é suficiente para dar resposta às suas necessidades (Orem, 1991). Os défices de autocuidado identificam-se como totais ou parciais; o primeiro implica Escola Superior de Enfermagem do Porto Autocuidado: Um Foco Central da Enfermagem a ausência de capacidade para satisfazer as necessidades e o segundo, refere-se à incapacidade de satisfazer alguma, ou algumas necessidades (Orem, 1991). O último conceito central é o de intervenção de enfermagem, que refere a atenção de um enfermeiro como a ajuda para dar resposta às necessidades de autocuidado da pessoa (Orem, 1991). As intervenções podem ser, de acordo com a Teoria dos Sistemas de Enfermagem: totalmente compensatórias (compensar a incapacidade, apoiar e proteger); parcialmente compensatórias (substituir o cliente em algumas atividades); ou de apoio e educação (ajudar na tomada de decisão, fomentar a aprendizagem, fornecer informação), tendo por objetivo satisfazer e modificar os requisitos de autocuidado universal, de desenvolvimento e de desvios da saúde (Orem, 2001). Um conceito adicional apresentado por Orem é o requisito de autocuidado, definido como ação voltada para a provisão do cuidado, isto é, as condições básicas requeridas para se atingirem os objetivos pretendidos. Os requisitos de autocuidado apresentam três categorias: 1) universais; 2) de desenvolvimento; 3) de desvios da saúde. Os requisitos universais representam as ações humanas que se produzem a partir das condições internas e externas do indivíduo, que mantêm a estrutura e funcionamento humano, sendo comuns a todos os seres humanos durante todos os estádios do ciclo vital e atendem a aspetos de idade, sexo, estado de desenvolvimento, fatores ambientais e outros. Os requisitos de desenvolvimento estão associados aos processos de desenvolvimento humano, assim como às condições e eventos que ocorrem durante diversas etapas do ciclo vital; eventos que podem afetar o desenvolvimento, tais como: infância, adolescência, envelhecimento, gravidez e parto, situação de casamento, divórcio, situações de mudança no percurso da vida (Orem, 1991). E, por último, os requisitos de desvio da saúde estão associados às alterações na constituição corporal, à genética, aos desvios estruturais e funcionais, com seus efeitos e às medidas de diagnóstico e terapêutica médica (Orem, 1991). Os fatores condicionantes básicos, internos e externos ao indivíduo, são aqueles que afetam a sua capacidade, o tipo e a quantidade de cuidado requerido. Basicamente são as características pessoais, como: idade, sexo, estado de desenvolvimento, estado de saúde, fatores socioculturais, familiares e ambientais, padrão de vida e a disponibilidade de recursos (Orem, 1991). Apesar do contributo desta teoria para as ciências de enfermagem, o sentido dado por Orem ao autocuidado desvia-se substancialmente da apropriação do cidadão comum, pelo que importa analisar a sua origem e evolução dentro e fora da profissão. Leenerts e colegas referem que a perceção da saúde pode moldar a qualidade de vida durante o processo de envelhecimento, de forma ainda mais significativa do que em fases anteriores, daí que a saúde na velhice pode ser melhorada por estratégias de autocuidado (Leenerts et al., 2002). Assim, as autoras, tendo por referência que, em geral, as capacidades de autocuidado tendem a diminuir a partir dos 75 anos, recomendam que a educação para o autocuidado deva ser uma prática em todas as idades, com a incorporação de perceções e crenças sobre si mesmo e sobre a sua saúde, bem como abordando a capacidade funcional e os problemas médicos reais (Leenerts et al., 2002). O foco é ajudar as pessoas a identificar o que pode ser mudado e aceitar ou admitir o que não pode ser alterado. Dado que a consciência e a transcendência têm sido associadas às capacidades e ações de autocuidado, Leenerts e colaboradores defendem que a utilização destes achados pode direcionar o autocuidado numa aproximação mais holística e a ser aplicadas estratégias educacionais que ajudem os idosos a aceitar os desafios inerentes ao envelhecimento e a utilizar práticas de autocuidado que promovam uma melhor adaptação às transições decorrentes desta fase de vida. Esta atitude é favorável a um modelo centrado na pessoa (Narasimhan, Allotey, & Hardon, 2019). Assim, as autoras propõem um modelo de Autocuidado para Promoção da Saúde no Idoso constituído por cinco dimensões: ambiente interno e externo, capacidade de autocuidado, educação, atividade de autocuidado e resultados. O ambiente interno e externo inclui sete elementos: autoconceito, objetivos, motivação, imagens de saúde, condição física, condição emocional e contexto cultural. A segunda dimensão do modelo, a capacidade de autocuidado, consiste em cinco condições que promovem a prontidão Escola Superior de Enfermagem do Porto Autocuidado: Um Foco Central da Enfermagem AUTOCUIDADO ENQUANTO RESPONSABILIDADE SOCIAL O autocuidado representa um alicerce essencial para melhores práticas, permitindo um crescimento da profissão (Miller & Grise-Owens, 2020). Miller e Grise-Owens referem que as medidas de autocuidado devem ser implementadas desde o nível macro até ao nível pessoal. Assim, defendem que as instituições devam ter um compromisso de promoverem medidas de bem-estar aos seus funcionários (compromisso a nível organizacional). Também, os profissionais devem desenvolver práticas que sejam promotoras do autocuidado, devendo haver um compromisso no desenvolvimento de recursos que ajudem as pessoas a ter um papel importante nestas ações, que se aplicam ao nível físico, psicológico e social, ou dito de outra forma permitam uma visão holística da pessoa. Esta visão profissional do autocuidado deve ser aplicada em todas as ações profissionais. Outro aspeto importante, defendido pelos autores, reporta-se a uma prática integrante deste constructo na socialização inicial e prática contínua da profissão, ou seja, durante a formação dos profissionais os currículos abordam aspetos essenciais da profissão e o autocuidado deve ser um destes elementos agregadores (Miller & Grise-Owens, 2020). Nesta perspetiva, o autocuidado é uma obrigação moral nos códigos deontológicos, quer na orientação das práticas clínicas, quer como uma referência para uma conduta individual do próprio profissional (Linton & Koonmen, 2020). O código da Associação de Enfermagem Americana, tal como de muitas outras organizações, tem explícito que os enfermeiros têm a obrigação de adotar medidas de autocuidado nas suas funções quando prestam cuidados aos doentes (Linton & Koonmen, 2020). A teoria do cuidar de Watson reforça esta ideia ao defender que o enfermeiro antes de ser atencioso, amoroso e compassivo por outra pessoa, deve praticar a bondade, a compaixão e a equanimidade para consigo mesmo e manter a prática diária de medidas de autocuidado dirigidas a si próprio (Linton & Koonmen, 2020). Segundo Watson o autocuidado é uma parte essencial do trabalho da enfermagem, devendo o profissional prestar atenção na sua consciência, intencionalidade e atenção plena em cada momento (Linton & Koonmen, 2020). Para além da OMS que tem desenvolvido um importante trabalho na divulgação das estratégias e políticas relacionadas com o autocuidado, também outras instituições nos merecem destaque. O International Center for Self Care Research é um centro de investigação internacional na área do autocuidado, com a missão de divulgar e priorizar o autocuidado como a primeira linha de abordagem nos cuidados de saúde. A missão do centro é liderar o esforço de pesquisa na área do autocuidado, melhorando a clareza conceitual e promovendo o trabalho interdisciplinar por uma visão compartilhada. O International Self Care Foundation é uma organização que promove estilos de vida saudáveis, através do apoio educacional e informações sobre autocuidado e estilos de vida saudáveis.
doi:10.48684/6sk0-ff98 fatcat:yz2gb2trdndadbcvswsk7rkldm