Trajetória individual, imaginação e narrativa - três questões provocadoras e sugestivas em Como Shakespeare se tornou Shakespeare

Henrique Buarque de Gusmão
2012 Topoi  
Greenblatt, Stephen. Como Shakespeare se tornou Shakespeare. Tradução de Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Como Shakespeare se tornou Shakespeare, de Stephen Greenblatt, pode ser uma leitura ao mesmo tempo provocadora e sugestiva para historiadores. Proponho, nesta resenha, uma apresentação de três eixos de questões -ou três elementos da análise de Greenblatt -que percorrem todo o livro e que me parecem inquietantes e propositivos para a produção
more » ... toriográfica contemporânea. O primeiro deles é a forma como Greenblatt aborda a trajetória individual do célebre dramaturgo inglês. No prefácio do livro, o autor apresenta seus objetivos gerais. O principal deles é percorrer os caminhos que levam da vida de Shakespeare à sua obra. Tal objetivo busca superar uma sensação recorrente de leitores e analistas da obra shakespeariana: a de que suas peças e sonetos resistem a explicações, tendo sido escritas por uma espécie de deus a-histórico e absolutamente genial. Para escapar dessa imagem mitológica de Shakespeare e de sua produção, Greenblatt reconstrói múltiplas relações que o dramaturgo teria estabelecido em seu espaço social, sendo ele percebido como um escritor extremamente aberto para o mundo -dimensão esta que está presente no título original em inglês: Will in the world. São levados em conta, neste trabalho de reconstrução de uma trajetória individual, os livros que o dramaturgo teria lido; ordinárias questões de seu dia a dia; o preço do papel em sua época; o ambiente das reformas religiosas, que não poderia ter esca-pado a Shakespeare; encontros possíveis do autor com rebeldes católicos, como Edmund Campion. Lançando mão desses tão distintos elementos de análise, Greenblatt realiza um dinâmico jogo em que se entrelaçam ações de Estado ou da Igreja e sutis estratégias individuais. Esta reconstrução das múltiplas relações estabelecidas por Shakespeare é realizada, principalmente, para a compreensão de uma dimensão bastante delicada na análise da vida de um artista: o momento de sua criação. Greenblatt analisa as condições em que Shakespeare escreve suas peças percebendo como funcionava o mundo das diversões e do teatro no qual ele se insere. Logo nos primeiros capítulos do livro são discutidas as moralidades (gênero teatral medieval didático que apresentava de maneira alegórica virtudes e vícios) que o dramaturgo teria assistido em sua adolescência e que alicerçam suas primeiras referências teatrais. Também são estudados testamentos de pessoas ligadas a teatro e orçamentos de companhias como forma de se compreender as condições financeiras a partir das quais as peças eram encenadas. No capítulo 6 (A vida nos subúrbios), Greenblatt aprofunda-se na compreensão do ambiente teatral a partir do qual Shakespeare cria suas peças, analisando mais detidamente o mundo das diversões nos subúrbios londrinos. Estes primeiros anos de Shakespeare em Londres são abordados como momentos de profundas transformações no mundo teatral: com o crescimento urbano e com a sedentarização dos teatros, muitos escritores passam a produzir em torno de vinte peças por ano. Ficam postas, então, circunstâncias institucionais que criam um mercado de teatro e de escritores
doi:10.1590/2237-101x013025016 fatcat:kpgqbso22bg4bjv7huwwqklhzu