Sobre as relações históricas entre a física e a metafísica na obra de Pierre Duhem

Fábio Rodrigo Leite
2013 Scientiae Studia  
resumo No presente artigo, procuramos mostrar, por intermédio de numerosos exemplos, que a distinção lógica operada por Pierre Duhem entre a física e a metafísica não impossibilita que, do ponto de vista histórico, o autor reconheça a existência de um entrosamento profícuo a cingir as duas áreas do saber. Distinguimos três níveis possíveis de interação entre a física e a metafísica, porque acreditamos que ele aceita (a) que o físico trabalha constantemente movido por ambições metafísicas não
more » ... orizadas pela rigorosa lógica, (b) que os sistemas metafísicos contribuíram para muitos dos progressos das teorias físicas, em especial, para o nascimento da ciência moderna e (c) que podemos identificar tradições metafísicas de pesquisa duradouras que se mostraram mais férteis do que algumas tradições positivas. Palavras-chave • Duhem. Física. Metafísica. Metodologia. História da ciência. Historiografia. 1 Das três doutrinas metafísicas citadas por Agassi como tendo sido ignoradas por Duhem, digamos desde já que, a despeito do breve tratamento, a teoria da alma do mundo, estreitamente vinculada à teoria do grande ano, é analisada por ele no primeiro volume de O sistema do mundo (Le système du monde) (p. 246-71), assim como a teoria do grande ano (p. . A teoria da indestrutibilidade da matéria, desde que ela possa ser traduzida na teoria Sobre as relações históricas entre a física e a metafísica na obra de Pierre Duhem scientiae zudia, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 305-31, 2013 A leitura da citação acima permite que apuremos qual seria, segundo Agassi, a amputação história cometida por Duhem. Não apenas ele teria menoscabado a influência da metafísica sobre a ciência como, inversamente, as contribuições históricas da ciência para a metafísica. Trocando em miúdos, a história duhemiana da ciência não patentearia qualquer intercâmbio com a história da metafísica. Física e metafísica seriam como que dois blocos separados e estanques, que evoluiriam de modo assaz divergente. A fortuna das críticas de Agassi reservou-lhes novos aportes, da qual Lakatos é um dos herdeiros mais reconhecidos. Se o filósofo húngaro reconhece o apreço de Popper pela "metafísica influente", ele o separa de Duhem, incluído na "maré antimetafísica" da historiografia, que seria suplantada apenas por Burtt, Koyré e pelo próprio Popper (cf. Lakatos, 1979, p. 227, nota 351). "Firme positivista" (Lakatos, 1989, p. 145, nota 32), Duhem não aceitaria que a metafísica pudesse exercer alguma influência sobre a física no presente e não reconheceria a fecundidade dessa influência no passado. Interpretação um tanto parecida, embora mais bem fundamentada que as demais, pode ser encontrada na leitura de Pablo Mariconda. Para o comentador, ao estudar a ciência dos séculos xvi e xvii, Duhem estaria cometendo uma espécie de "anacronismo metodológico" (Mariconda, 1994, p. 151), uma vez que a leitura duhemiana daqueles séculos seria feita com a finalidade de confirmar a metodologia falibilista que viria a ser amplamente defendida apenas no futuro (no século xx, em particular). Ora bem, como Mariconda parte do pressuposto de que a teoria da ciência do filósofo francês é concebida nos moldes instrumentalistas, os elementos cosmológicos (metafísicos) recebem naturalmente uma atenção diminuta na exposição do debate astronômico do século xvii, encontrada especialmente em Salvar os fenômenos (cf. Mariconda, 1994, p. 157), toda a questão seria reduzida a uma disputa meramente astronômica. Munido desse padrão interpretativo, nosso autor seria levado em sua reconstrução histórica a condenar retrospectivamente a concepção metodológica realista de Galileu e de seus contemporâneos, deixando de notar que essa concepção era entendida, à época, como uma exigência que serviria de marca distintiva da superioridade de sua ciência diante da ciência do passado. Segundo Mariconda, "toda sua historiografia se ressente dessa tendência a procurar reconstruir a história da ciência de modo a torná-la compatível com as exigências de uma concepção instrumentalista do método científico", de modo que essa história torna-se "uma história de teorias -constructos matemáticos -constantemente desenvolvidas e melhoradas por pessoas que aderiram conscientemente ao da eternidade da matéria primeira, ligada à teoria oposta, a teoria da criação da matéria primeira, é também discutida no Sistema durante a terceira e quarta partes da obra, embora não de modo sistemático e contínuo, já que ela é analisada isoladamente em cada autor estudado. Em algumas oportunidades dessas duas partes, a doutrina da alma do mundo será retomada. Sobre o atomismo, ver a seção 4 deste artigo.
doi:10.1590/s1678-31662013000200004 fatcat:hyc74spkcfedpli2g4rlx3obtq