A questão da verdade na produção de conhecimento sobre sofrimento psíquico: considerações a partir de Ian Hacking e Jacques Lacan [thesis]

Paulo Antonio de Campos Beer
RESUMO BEER, P. A. C. A questão da verdade na produção de conhecimento sobre sofrimento psíquico: considerações a partir de Ian Hacking e Jacques Lacan. 2020. 265 f. Tese (Doutorado) -Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. O objetivo desta tese é reafirmar a necessidade de debate sobre a questão da verdade na produção de conhecimento sobre sofrimento psíquico. Parte-se da acepção de que a questão da verdade carrega duas formas principais: por um lado, ela é o termo
more » ... empregado na legitimação de conhecimentos produzidos, instaurando padrões normativos; por outro, apresenta-se enquanto elemento disruptivo, sendo uma forma crítica ao saber estabelecido. Trata-se de uma discussão que engloba tanto a afirmação do caráter necessário quanto a variabilidade do conhecimento, de forma que será argumentado que o termo "verdade" deve ser tomado enquanto a reunião recíproca de elementos epistemológicos, ontológicos, éticos e políticos. A compreensão historicizada da ciência, formulada por Ian Hacking, permite pensar que as bases da prática científica são contingentes, mas ainda assim produzir um conhecimento necessário. Desse modo, é possível estabelecer um campo em que compreensões normativas sobre o fazer científico podem ser criticadas sem resultar num tipo de desqualificação do conhecimento produzido. Junto a isso, a proposição do filósofo de uma "ontologia histórica" e seu "nominalismo dinâmico" apresentam uma importante contribuição para o debate acerca da produção de conhecimento sobre sofrimento psíquico, ao introduzir a consideração dos efeitos ontológicos do conhecimento. Com isso, apresentamos o modo como a questão da verdade é mobilizada dentro da psicanálise lacaniana, a partir de três elementos centrais: a autonomia da verdade em relação ao sujeito (a verdade fala), o caráter opositor e temporário de uma verdade positivada em relação ao saber estabelecido (a verdade enquanto crítica) e a dimensão negativa da verdade que responde à inesgotabilidade desse processo dialético de negações (a verdade como diferença radical). Argumentamos que é possível pensar em um estilo de raciocínio (nos termos de Hacking) próprio à psicanálise, baseado numa noção de negatividade forte. Além disso, ambas as racionalidades trabalham com uma concepção de conhecimento historicizada e que não responde a nenhum critério externo (ou interno) que garanta sua verdade. Entretanto, a psicanálise leva a questão da negatividade mais longe do que a filosofia da ciência de Hacking, oferecendo possibilidades mais amplas de pensar a causalidade do sofrimento psíquico. Os dois caminhos levam, mesmo que com diferentes intensidades, à necessidade de implicação ética e política na produção e no uso do conhecimento. Uma vez que não há uma instância que garanta epistemologicamente o saber, a pertinência de sua produção é tributária de acordos sociais e posicionamentos éticos. Há, portanto, a necessidade de consideração de relações de poder. Por fim, argumentamos que a negatividade forte que sustentamos a partir da psicanálise localiza o político enquanto o campo de negociação por excelência, inescapável pelo próprio fato de que não é possível cristalizar uma forma da verdade que não seja a afirmação da diferença. Sustentamos, desse modo, que a introdução da questão da verdade tem como horizonte a produção de um conhecimento sobre sofrimento psíquico que coloque em xeque, a todo momento, seus pressupostos epistemológicos, ontológicos, éticos e políticos. Palavras-chave: Verdade; Psicanálise; Filosofia da ciência; Sofrimento psíquico ABSTRACT BEER, P. A. C. The question of truth in the production of knowledge about psychic suffering: considerations inspired by a critical reading of Ian Hacking and Jacques Lacan. 2020. 265 p. Thesis (PhD) -Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. This thesis aims to reaffirm the necessity of the debate about the status of truth in the context of knowledge production about psychic suffering. It states, first and foremost, that 'truth' is employed in two different outlines: on one hand, it is employed to legitimize produced knowledge, thus establishing normative patterns; while on the other hand it is presented as a disruptive element, working as a critical instance to established knowledge. Considering truth in such terms locates knowledge in terms both of its necessary as its variable character, and the term 'truth' itself stand dependent on epistemological, ontological, ethical and political elements. This standpoint articulates with Ian Hacking's historicized understanding of science, which enables the consideration of contingent bases to scientific practice but still producing knowledge that must be considered as necessary. In this sense, it is possible to establish a field in which normative understandings about scientific praxis might be criticized without resulting in any kind of refusal or disqualification of the produced knowledge. In addition, his proposition of a "historical ontology" and of a "dynamic nominalism" presents an important contribution to understand the workings of knowledge production in the context of psychical suffering, by introducing into the debate the consideration of the ontological effects of produced knowledge. Taking these issues into account the thesis moves on to the matter of the way in which the concept of truth is construed within Lacanian psychoanalysis, focusing on three main elements: 1. truth's autonomy toward the subject (truth speaks), 2. the opposing and temporary character of a positivized truth facing established knowledge (truth as critique), and 3. the negative dimension of truth, which relates to the inexhaustibility of this dialectical process of negations (truth as radical difference). It is argued that it is possible to sustain a particular reasoning style (in Hacking's terms) for psychoanalysis, based on a radical conception of negativity. Also, both rationalities (Lacan's and Hacking's) work with a historicized understanding of knowledge that does not have any external (nor internal) criteria to warrant its truth. However, psychoanalysis takes negativity beyond Hacking's philosophy of science, offering a wider range of possibilities when thinking about causality for psychic suffering. Both ways (albeit with different intensities) lead to a consideration of the necessary ethical and political implication in knowledge production and deploymentonce there is no epistemological warranty to knowledge, its production value is tied to social agreements and ethical positionings. There is, therefore, the necessity of considering power relations. Agradecimentos Agradeço, primeiramente, a Nelson da Silva Junior, pelos ótimos anos de trabalho que atravessamos juntos. Agradeço o apoio, o respeito, o rigor e, sobretudo, a parceria. Obrigado. A Stephen Frosh pela acolhida no estágio de pesquisa em Birkbeck, me mostrando outros jeitos de trabalhar. Agradeço a o interesse e a liberdade, nesse período que me ajudou a escolher diversos caminhos. A Christian Dunker e a Léa Silveira pelas leituras atentas no exame de qualificação, e pelas contribuições generosas ao longo de todo o trabalho. A Gilson Iannini, pelo empurrão inicial e pelo caminho das pedras. A Marcelo Ferretti, pelas trocas leves e potentes. A Ilana Katz, por essa nova parceria: gentil, cuidadosa e implicada. A Hugo Lana, Pedro Ambra, Rafael Alves Lima, Diego Penha e Paulo Sérgio de Souza Jr, pelo trabalho em conjunto, as conversas, as madrugadas. Pela presença e pela inquietação constante. Ao Paulo Sérgio, ainda, pela leitura atenta e cuidadosa. A Wilson Franco, por todos os projetos mirabolantes e pelo espaço para a loucura. A Beatriz Santos, pela amizade leve e sorridente. A todos que passaram e que chegaram no grupo de orientação, pelo trabalho em conjunto. Em especial Mario, Heitor, Guilherme, Lia, Leilane e Matheus, muito obrigado! Aos colegas de Birkbeck: Marita, Ayelen, Iulia, Ana, Valeh, Josh. Foi ótimo conhecer um pouco o mundo de vocês. A Aline, meia de lá, meia de cá. A Sue Goldblatt e Jon Stanley, por nos ajudarem a sentir em casa. E a Hugo Tannous, amigo de longe e tão querido. Aos amigos do Latesfip, por fazerem o trabalho ser tão prazeroso: Clarice, Ronaldo, Luckas, Augusto e tantos outros. A Bel Tatit e Rodrigo Alencar, companheiros da maior aventura que se pode imaginar. A e Carol Colombo, pelo carinho, pelas conversas. A Lenara e André, por todo afeto. A Jonas Boni, pelas contribuições. A Pedro Obliziner, pela presença tranquila. A Cristiane Nakagawa, pela amizade, pela parceria, pelo convite. A Fabio Carezzato e Yuri Nishijima: é um prazer trabalhar ao lado de vocês. A Danielle Gimenes e José Moura, pela construção de algo melhor. A todos os membros e parceiros do Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos, pela força e cumplicidade. A meus amigos de colégio, por todas as tardes em que pudemos discutir de tudo um Flávia, Lupo e Rafinha. À Nina, amiga querida. Aos amigos da Fúria FFLCH: sempre um privilégio. A Dri, Chris, Malu e Tom, pelos encontros nos lugares mais lindos, e com tanto carinho. A minhas irmãs, Andrea e Marina, cujas expectativas me fazem querer ser melhor. A meus cunhados, André e Guilherme, pela amizade. A meus sogros, Cidinha e Nelson, por todo o apoio, sempre. A meu pai, Raul, por ter me ensinado que sempre há uma pergunta a mais. A minha mãe, Maria Lucia, por mostrar que nem sempre precisamos responder. A Tereza, que me mostra caminhos que nunca imaginei. A Luiza, minha companheira, obrigado. Nem com todas as palavras seria possível dizer como é bom viver ao seu lado. Agradeço à FAPESP (nº 2016/03096-7 e 2018/09753-5) pelo apoio na realização da pesquisa.
doi:10.11606/t.47.2020.tde-28052020-185500 fatcat:2mjsi46krrgqzcnboqdcayio2y