Caetés: nossa gente é sem herói
Erwin Torralbo Gimenez
2008
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros
Resumo Centrado na análise de Caetés, primeiro romance de Graciliano Ramos, o ensaio procura examinar o processo de formulação das idéias e dos aspectos formais, ainda sob impasses, que já indicia o projeto do autor: a impossibilidade de tornar o índio uma figura épica, desmistificando o passado e provando os seus reflexos contínuos no ciclo de explorações; o adensamento do núcleo conservador dessa lógica, construída na metonímia de uma pequena cidade, onde se preservam as marcas de uma
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... sem rupturas efetivas; e, em especial, o percurso do nar rador rumo à consciência que, apesar de só se insinuar ao fim, encerra o livro com o desalento de quem já não escapa ao reverso das ilusões. Trata-se, com efeito, de um esboço de romance moderno, ajustado à matéria brasileira, pois promove a revisão dos descompassos nacionais, trazidos à tona na medida em que conduz o protagonista à reflexão solitária, para fora dos vícios ordinários do ambiente. Palavras-chave Graciliano Ramos; romance brasileiro; pobre-diabo; narrador erradio revista ieb n47 setembro de 2008 161 1 Este texto apareceu, originalmente, como um capítulo de minha tese de doutoramento, que versou sobre os romances em primeira pessoa de Graciliano Ramos. GIMENEZ, Erwin Torralbo. Graciliano Ramos: o mundo coberto de penas. 2005. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) -Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Abstract Centered in the analysis of Caetés, Graciliano Ramos's first novel, the essay tries to examine the formulation process of the ideas and the formal aspects, still under some impasse, that already indicates the author's project: the impossibility to make the Indian into an epic figure, demystifying the past and proving its continuous reflexes in the cycle of explorations; the thickening of the conservative core of that logic, built up on the metonym of a small town where the marks of a story without effective breaks are preserved; and, specially, the narrator steps towards the conscience which, despite the insinuation presented only in the end, finishes his book with the feeling of not escaping from the illusions reversal. It is, in fact, a sketch of the modern novel, adjusted to the Brazilian subject, for it promotes the reconsideration of the national differences, brought to the surface at the same time it leads the protagonist to the lonely reflection outside the ordinary vices of its environment. Keywords Graciliano Ramos; Brazilian novel; poor devil; erratic narrator. 162 revista ieb n47 setembro de 2008 único favor que nos devem os índios é deixarem de comer carne humana. [José Bonifácio] Brasil é um país fundamentalmente carnavalesco. Palmeira é uma cidade essencialmente brasileira. Grande parte dos defeitos e das virtudes que no brasileiro se encontram, em geral, o palmeirense possui, em particular. Reproduz-se entre nós, em ponto pequeno, o que o país em ponto grande produz. [...] Por cima e por baixo, o mesmo fenômeno, com diferença de gradações: estopa pintada de preto, a fingir casimira. A pátria é um orangotango; nós somos um sagüi. Diversidade em tamanho, inclinações idênticas. Imitações, adaptações, reproduções -macaqueações. O que o Rio de Janeiro imita em grosso nós imitamos a retalho. Usamos um fraque por cima da tanga, alpercatas e meias. revista ieb n47 setembro de 2008 163 O De resto, nenhum pensamento, nenhuma ação, muito falar. Temos a idolatria da palavra, vazia embora. É comparando mal, coisa semelhante ao culto do selvagem que adora a feição material de seus grosseiros manipanços de pau. A idéia escapa-lhes. Nossa preocupação máxima é falar bonito. O país é preguiçoso. Dormir é a grande felicidade da vida. Coerentemente, a cidade dorme ou sonha acordada. Acordada? Engano. Vive numa modorra. De longe em longe estira os braços, espreguiça-se num bocejo, esfrega os olhos -e volta a mergulhar a cabeça nos travesseiros. [Graciliano Ramos, 1921] A crônica em xeque A técnica pessoal em arte, quando se lida com um criador capaz de engendrá-la, costuma mostrar-se, em seus traços ainda não de todo consumados, já nas primeiras obras. É nos rastros iniciais da sua produção, talvez, e menos nos títulos bem acabados, que devemos começar a investigar a idéia e a expressão particulares, o sentimento e a perspectiva, o estilo enfim, responsáveis pela arquitetura própria de um escritor, no caso da literatura, a grafar a sua verdade. Escapando à solidão necessária para construir a sua visão, o autor converte, na forma literária, o conceito pessoal em testemunho coletivo. Porém, ele não se faz sozinho, embora aspire à originalidade, porque partilha do cotidiano comum e da tradição artística -o seu trabalho se obstina em penetrar a cultura, em termos de juízo e de estética. Quem se dedica a divisar o engenho de Graciliano Ramos, portanto, precisa atentar para o seu livro de estréia: Caetés. Publicada em 1933, apesar de composta entre os anos de 1925 e 1928, a obra traz a marca dos pontos isolados, cujo lugar é difícil determinar meio às tendências da época, e trai os germes de um projeto literário ímpar. Após escrever poemas e crônicas sob pseudônimo, o autor resolve ceder à instância de um editor carioca, assinando um romance que escondia na gaveta. É verdade que não se alça, ainda, ao nível dos títulos posteriores, mas, por isso mesmo, deixa entrever, no descosido da forma, as linhas de força da técnica que depois se potenciaria já sem impasses. Bem, se seria injusto erguer o livro ao patamar dos romances seguintes, mais injusto seria descartá-lo porque está à sombra dos demais. 164 revista ieb n47 setembro de 2008
doi:10.11606/issn.2316-901x.v0i47p161-180
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