Da falácia da 'actividade física'
Jorge Bento
2006
Portugese Journal of Sport Sciences / Revista Portuguesa de Ciências do Desporto
1. As presentes considerações surgem como reacção a um refinado ataque ao desporto, perpetrado por quem tem com ele uma relação ditada por reservas, equívocos, complexos e preconceitos mentais, casados em comunhão de bens com uma confrangedora indigência cultural e filosófica. O dito ataque está a acontecer em duas frentes: no plano da lei e nas orientações perfilhadas por algumas entidades académicas. Numa e noutra frente confluem correntes de proveniências diversas, umas ingénuas e confusas e
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... outras bem espertas e oportunistas, contribuindo todas elas para alimentar e aumentar a onda neoliberal (revestida do verniz de um hipócrita e falso humanismo) e a sua pretensão de neutralidade ideológica e axiológica, de negar e retirar ao desporto dimensões constituintes do seu património e legado de princípios e valores. No primeiro caso trata-se da designação da nova Lei de Bases que visa regular o sector em Portugal. Ela introduziu e chamou a primeiro plano a expressão 'actividade física', desconsiderando e relegando o desporto para um lugar secundário. 1 No segundo caso trata-se da proliferação da tendência -oriunda do espaço americano e com ramificações noutros quadrantes -de promover igualmente a 'actividade física' a categoria e referência centrais, não apenas no tocante à criação de cursos de pós-graduação, como também no estabelecimento e desenvolvimento de programas de acção e de linhas de pesquisa. É contra esta tentativa de aplicar um garrote em torno do desporto que urge desencadear um movimento que faça frente aos equívocos e traga à colação a extraordinária valia da actividade desportiva. Eis uma responsabilidade e uma obrigação indeclináveis para todos quantos amam o desporto, entendem e apreciam a sua incumbência cultural ao serviço do processo de civilização dos humanos e da respectiva sociedade. 2. O pretexto para este renovado ataque ao desporto é fornecido pelos dados de numerosos estudos, bem como pelas preocupações da OMS -Organização Mundial de Saúde. Ambos apontam a inactividade física e a obesidade como as duas grandes ameaças à saúde pública no século XXI. A partir daí a 'actividade física', sem clarificar o seu tipo e a sua forma, é erigida em panaceia para combater a doença e para garantir a saúde; ela passa a ser recomendada e receitada para a generalidade da população, enquanto o desporto é reduzido à sua versão profissional e comercial e perspectivado como prática de uma elite, com toda a aversão, condenação e rejeição que isto suscita. Conhece-se bem o zelo fervoroso e ideológico que anima, em regra, os arautos da dicotomia 'povo-elite'. Assim a 'actividade física' é a actividade que deve ser postulada e consumida por ser saudável, sã, genuína e depurada dos excessos do desporto. Este deve consequentemente ser abandonado, por ter em cima de si os desvios, estigmas e opróbrios que cobrem, aos olhos dos populistas, todos quantos não se conformam à norma por baixo, à pequenez e insignificância, ao apoucamento e à mediania e gostam de triunfar e vencer, de almejar a superação e a excelência. Mais, para os apologistas da 'actividade física' e para que se consiga o efeito 'saúde' basta que o indivíduo ande, se mexa e agite, que consuma minutos e calorias, que diga letras e sílabas, sem necessidade de compor palavras e frases e, muito menos, textos com sentido e significado; basta-lhe ser instintivo, natural e primitivo, não sendo necessário que melhore o seu vocabulário e reportório motores, que aprenda e
doi:10.5628/rpcd.06.03.259
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